Um: carta à neta
Querida,
Essa é a primeira de muitas cartas que escreverei para você. Ela fala do nosso primeiro encontro e seu significado. Um encontro de conhecimento e reconhecimento mútuo e, que ao acontecer, me condição de retrospectiva me jogou, sem possibilidade de escolha, a pergunta ontológica de “quem sou eu” e sua consequente resposta.
O que foi ao nascer, como acontecia com você naquele momento e o que acorreu comigo para me tornar o que sou a partir daquele momento tão importante de nossas vidas e da vida de todas as pessoas? Momento tão axial de encontro com outro, ao mesmo tempo, tão meu, tão eu e, tão diferente de mim, em termos de tempo e individualidade, minha terceira geração.
O nosso primeiro encontro significou para mim uma mirada para fora de tal forma deslumbrante, cuja força me remeteu a minha pergunta ontológica e a sua com sequente resposta: “quem sou eu?”
Uma pergunta, cuja construção da resposta exige que eu comece, bem do comecinho do que eu fui passando pelo que foi acontecendo para eu ser aquilo que, hoje, me tornei.
Assim, quando penso o que fui ao nascer, gosto de me imaginar como um lindo coelhinho, um ligeiro golfinho ou um leve colibri. Imagens de uma coisinha miúda e feliz, porém em início de desenvolvimento – um sonho - um projeto de gente. E, nesse sentido, imagino-me, também, uma plantinha que se tornou uma árvore delicada, até mesmo frágil, porém muito frondosa e florida – bonita, do mesmo modo, que foi, inicialmente.
Como essa passagem não aconteceu de forma abrupta, na infância inicial foi essa plantinha que, pela sua tendência direcional ao crescimento, tornou-se uma adolescente cheia de energia para realizar esse sonho-projeto de si mesma e com essa mesma energia me tornei uma jovem, que olhava para o que eu era, havia me tornado e, nesse olhar me via como uma jovem-árvore forte, porque tinhas construído boas raízes e abundantes galhos e prontos para florir e frutificar.
Assim, me tornei mulher-mãe de três belas meninas a crescerem exterior e exteriormente e, como eu, tornaram-se jovens e felizes mulheres, belos galhos meus a aumentar a minha copa de árvore gente. Disponibilidade para a vida em abundância.
Para mim tudo era pleno e eu me sentia completa – vivências, flores e cores eram a minha existência. Qual quê, eu não imaginava que podia ser muito mais até que um dia, um desses meus rebentos-galhos – Érica, sua mãe, explodia em cores, sabores, amores... você! Um outro rebentinho, que tornou a vida inusitada.
Indo lhe conhecer, chegando à maternidade – primeiro dia, primeiro (nosso) encontro, com um rápido olhar, de logo querer ver, por todo ambiente vi, através do vidro de uma incubadora, às costas de uma coisinha fofa que se aquecia do frio tiritante, que fazia e era preciso cuidar da estabilidade as sua temperatura.
Umas costinhas cobertas por uma camada fina de pelos escuros, mostrando o movimento ritmado da respiração de todo um corpinho de menina, cujo rostinho redondo era emoldurado por vastos cabelos cacheados e escuros. Eram cabelos abundantes a dar forma a um rosto com dois olhos vivazes e boquinha carnuda, parecendo um miúdo e belo botão de rosa. Primeira impressão... do muito que viria depois. No momento de ver seu rosto, o milagre em mim, eu estava completa de um uma incompletude que eu não sabia ter: a minha árvore de muitos galhos e muitas flores agora era habitada – como um passarinho que dá vida e som a floresta, você era/é o passarinho que veio vivificar a minha árvore-vida, encantando-a com o canto da sua vida, sacralizando essa árvore, que sou eu, agora e sempre mais completa e ritmo e harmonia, mais feliz pela chegada dessa vida, que é você, Ana Beatriz.
Tudo isso, porque ter netos é a certeza da nossa eternidade.
Te amo.
Vovó.