Modelo de carta do que ficou por dizer (e nunca enviada)

para J.

[data e local]

Querida [nome da destinatária],

A razão desta carta é libertar as palavras que ficaram por dizer. O tempo passou e a vida se foi (a nossa, amor, a nossa) impedindo-lhes a pronúncia ou, no mais, envelhecendo-as. Sim, sei que agora sofro pelo fato de que essas minhas injustificáveis omissões pesam-me sobre os ombros e amargam-me a língua por esse novo e eterno silêncio que agora me submeto, e por tal idiotice sinto o nosso passado violentado, de certa maneira, pelo destino irremediável, que não dera sinal algum de sua chegada, selando-me os lábios. Mas o tempo se renova, as folhas caem, as pétalas são pisoteadas e revolvida é a terra dos meus sentimentos por ti. Sinto por incomodar-te com isso, [nome da destinatária], mas essa carta é o monumento ultimo de minha covardia, derradeira homenagem da minha fragilidade como homem. Peço que me perdoe.

Você realmente não soube de metade das coisas que se passava em mim, assim como eu também não devo ter sabido de tantas outras passadas contigo; Não sabe, por exemplo, que [inserir aqui todas aquelas coisas que não foram ditas por razões diversas, tais como: orgulho, egoísmo, covardia, ira, revanches, falta de oportunidades, etc.]; nem como [idem. desmembre estas coisas em tópicos, se possível, pra facilitar a compreensão], e não imagina o quanto [idem].

Agora que já sabe dessas coisas, não sei o que há de se fazer, nem o que acontecerá, se bem não me importo em absoluto com o meu destino, pois confesso que nada mais importa à partir do momento em que a ferrugem dos dias rotineiros recobriu o nosso bem-querer, decepcionando-a por inteira. Nada vai mudar; o tempo, sendo ele um produto de Deus, é implacável e poderoso, e sei que qualquer palavra que possa modificar um contexto já vivido só tem a eficácia e utilidade na hora exata do passado também exato e nunca esquecido, esse que aqui tolamente rememoro. Não, nada mais importa. Mesmo se algum dos santos tão sagrados descesse dos céus pra me questionar sobre o porquê dessa carta, não saberia dizê-lo. Talvez uma egoísta compensação do que deixei de fazer e continuei deixando de fazer até a passagem de nossas vidas, e agora procuro maneirar meu fardo antes que a minha vida também passe e o Escuro me envolva definitivamente. Poderia tudo ter sido tão diferente, não fosse minha fragilidade e teimosia em aceitar as minhas próprias mentiras, em afirmar que nada estava errado, que o sol ainda brilhava para nós dois, mal sabendo eu de que ele brilhava sobre mim, sobre mim, apenas! Poderíamos [meta aqui uma hipotése e/ou saída mais feliz para o desfecho da história]; Sim, também poderíamos [idem para uma hipótese mais feliz - sempre mais feliz para que a carta não perca o sentido], ou então [idem, e aqui pode colocar uns objetivos em conjunto que nunca se deram, como viagens nunca planejadas, filhos nunca concebidos e um filhotinho de cachorro - estes sempre ajudam]. Já imaginou?

Ainda é difícil pra mim, depois de tanto tempo, cuspir em chagas ainda abertas (mais abertas ainda pra ti), mas é esse um arrependimento inútil, como é inútil a própria natureza do arrependimento. Sim, é inútil sentir pena por suas feridas, sendo que infinitamente mais difícil fora a hora em que fiz as mesmas, o exato momento das chibatadas e dos coágulos que resistiram ao tempo, e que não movi um dedo pra me arrepender, quando era o momento. Com o que chamam de falsas cicatrizes, alimentei algumas boas lembranças, sempre apoiado sobre a tristeza de teus machucados que a mim permaneceram invisíveis, tais como [inserir aqui momentos vivenciados com alegria e prazer - vivenciados assim unicamente por você, mesmo tendo você pensado que tudo estava tão bem entre ambos], ou [idem]. Lembra? Ah, quem me dera ter percebido algo, quem me dera saber o que hoje eu sei, quem me dera ter te abraçado nessa hora e beijado-lhe como se fosse nossa primeira vez, e não tivesse me deixado levar pelo seu sorriso aparente que encobria a mais profunda das tristezas!

Ainda que seja uma tortura essas lembranças, sinto-me aliviado por dizer-te, dessa maneira covarde, tudo o que agora se passa cá comigo, mesmo depois de tanto tempo e poucos invernos. As verdades, sempre tardias, agora me dominam. Ainda assim, apesar das sinceridades aqui contidas e expostas de maneira tão crua, não posso deixar de admitir que tudo isso se trate de uma pequena mentira, toda essa carta - sentimentos verdadeiros, sendo mesmos verdadeiros, não deveriam ser expostos assim, com tanta sensatez e tanto alarde, e sim devem ser sentidos e repassados, com gestos, palavras baixas ao pé do ouvido, atitudes triviais e não menos intensas. Um euteamo nada diz hoje em dia, são apenas palavras ditas com gestos vazios. Um euteamo verdadeiro são os beijos com sabores de eternas "primeiras vezes", são as desculpas sinceras depois de uma briga, são os erros admitidos, é o companheirismo nas horas mais dificeis, é a sensação de vitória à cada vez que acordamos e nos vemos ao lado da pessoa amada, que ressona do lado direito da cama, com uma perna passada por cima da sua barriga. E é beijá-la em meio ao seu sono profundo, mesmo que ela jamais venha à saber desse beijo. O euteamo (como palavras) são só lembretes, memorandos, prólogos incompletos. Agora sei dessas coisas. O meu prólogo contigo não fora preenchido, e era sempre você que cedia numa briga, só pra cessarmos com as desavenças. E sinto muito por isso.

De qualquer maneira e seja como for, tua passagem ficou inscrita em minha vida para sempre.

Boa sorte: para ti e mais para mim, que vou precisar.

Ass: [nome do autor].

P.S.: Por favor, peço que não traduza essa carta como uma negativa do seu pedido. É claro que irei ao teu casamento, e agradeço pelo convite. A sua felicidade é importante agora, e sei que agora está mais do que feliz. Antecipo, aqui, os meus parabéns. Você merece.

[outro Post-Scriptum, se possível; deve-se dar a máxima ideia de que é uma verdadeira tortura impingir um ponto final nessa carta à ela remetida, pois sabe-se que é o último contato que terá com a destinatária, para sempre].

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(imaginem que o papel esteja amassado. Muito possivelmente, a carta será atirada e recolhida da lixeira por algumas dezenas de vezes, até seguir para o seu destino definitivo: a mesma lixeira.)