ANTECIPAÇÕES NO FIO DE VIVER

O meu texto A AMIZADE, http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/4197455, nasceu ao perceber que a juventude de minha interlocutora estava sendo injusta para com a sua mãe, a quem não conheço – mora em Brasília, diga-se de passagem... Porém, aproveitando a experiência de ser pai com filhos que já passaram pela adolescência, procurei cutucar a inteligência e escavar a razão da interlocutora, no sentido de que pudesse entender da provável injustiça e a corrigisse com ações amorosas e reconhecedoras da maternidade que lhe trouxera ao mundo há dezoito anos... Também a felicidade de ainda poder contar com a sua mãe viva e saudável, ao alcance dos abraços... Aproveito para reverenciar a memória de tua mãe recentemente ingressada na outra margem da vida, minha querida leitora Maria! Deus nos guarde! A minha veneranda raiz completará, em abril, três anos em cima de uma cama, com sonda vesical e de alimentação. Um trapinho jogado ao leito, que nem pronunciar palavra audível não mais consegue... A cada vez que a curto, nas visitas a Pelotas, volto de minha terra com uma sensação imensa de impotência e de inutilidade. E, tal como aconteceu contigo, corre-me por dentro a emoção, produzindo o choro, e imploro à Providência que lhe apresse a passagem. Mas é hora de esperar até não sei quando... Depois, é o imenso nada das ruminações e saudade... Morro um pouco a cada vez que a vejo, com os seus olhinhos diminuídos de visão; ora lúcida por segundos, em seguida o quase permanente olhar de paisagem, como se nada houvesse em sua volta que lhe pudesse chamar a atenção... O grande Nada para os olhos do instinto também deve ser uma dura provação... Este é o quadro triste de minha mãe em rememoração recente no seu leito de antecipações. Em verdade, vamos morrendo a cada dia, principalmente aos 86 anos, doente de memória lúcida e de funções outras, acumulando méritos pelo sofrer e corrigindo possíveis falhas havidas neste plano de expiações, segundo o espiritismo, que sempre foi a sua crença... Eu também vou morrendo aos poucos a cada vez que contemplo a iniquidade e se antecipa em mim a impossibilidade futura de, no mínimo, passar-lhe a mão sobre as alvacentas cãs e beijar-lhe a fronte, como sempre faço. Seu cabelo fininho que nem macio algodão... Neste justo momento, a palavra desaba e me dói inconsolada. E uma imensa amargura trava a garganta e escorrega na lágrima. O que resta senão a antecipação da perda? Deus – que O dizem ser fonte original – nos perdoe por sermos tão pequenos para entender a fusão de morte e vida... Sorvemos os sumos do rio de viver enquanto ainda podemos deglutir, como a criança que engole a placenta e corre os riscos da morte prematura, ao nascer... Nos estertores finais cuspimos a despedida, bem como cuspo agora o meu não entendimento do pré-maturo, cuja data não nos pertence...

– Do livro A FABRICAÇÃO DO REAL, 2013.

http://www.recantodasletras.com.br/cartas/4204545