Carta de Jean para sua esposa Leila (carta ficcional)

Meu amor... Sei que ao final desta missiva você dirá: “e ainda teve a coragem de dizer ‘meu amor’”?! Mas sim, meu amor. Amores são amores, seja lá onde se escondam.

Sempre gostei de quase tudo em você, quase. O que não gostava, e ainda não gosto, na verdade não está em você, está fora: a sua família. Pensando bem, você não é nada, e sua família é tudo. Não, sua família não é ruim, são todas pessoas de bem, legais, sinceramente. Mas nunca entendi porque você tem que ir à casa dos seus pais cinco vezes por semana, só lembrando que a semana tem sete dias. Inclusive aos sábados, que tínhamos sempre que jantar lá, e aos domingos sempre almoçar. Lembra quantas vezes te convidei para jantar fora em alguns sábados à noite? “Ah, hoje não, a mamãe fez pernil. Ah, no próximo quem sabe, este sábado a Estela vai trazer um salmão delicioso, quero aprender”. Você simplesmente recusou o que a maioria das mulheres se queixa com relação aos seus maridos: sair da rotina.

Sempre, em nossas vidas, a sua família esteve em primeiro lugar. Nem você mesma estava em primeiro lugar, sempre eles. Imagina como me senti nessa colocação. No começo achava que era coisa de início de casamento, que você precisaria de um tempo para cortar esse cordão, que aos poucos você iria sair daquela casa e tomar a nossa como sua. Mas não, isso nunca aconteceu. Nunca fomos só nós dois; seus pais, irmãs, tios, primos, cunhados, sempre estiveram entre mim e você no nosso leito conjugal.

Tudo isso explica o mau humor pelo qual eu vinha passando. Enchi de tudo. Não estava suportando nem ouvir falar o nome mamãe, papai, que tão sagrados são. E você nem notou que eu comecei a sair sozinho. Ir a bares sozinho, almoçar sozinho, jantar sozinho, ir ao cinema sozinho. Pois é, o cinema... Foi lá onde conheci a Julia. Depois de cinco filmes seguidos não foi difícil notar que ela frequentava os mesmos filmes e as mesmas sessões que eu. As sessões das sextas, as quais você “nunca” me acompanhou, lembra? E tudo começou de forma muito espontânea. Um dia apenas disse para ela na saída: “que demorado esse filme, em?” E pronto! Estamos juntos há oito meses. Fulminante.

Julia foi a salvação da minha alegria. Ela me fez recuperar o entusiasmo, o ânimo de viver, o tesão. E por que não dizer, o amor. Ela é preocupantemente parecida comigo. Não, não tão parecida como você já foi um dia, quando lhe foi apropriado ser. Ela tem o mesmo gosto musical que eu, o mesmo gosto literário, cinema... esse acho que não é necessário nem comentar mais. Não, Leila, não estou te chamando de burra, você só não tinha tempo para essas coisas. Como se pode ler com sua mãe, ou sua irmã, ou suas tias, ou suas primas, te ligando de quinze em quinze minutos? Quantos filmes interrompemos por causa de um maldito telefonema? Eu te entendo. A Julia tem tempo pra mim. Ela até costuma sair mais cedo do trabalho para nos encontrarmos no parque e ficarmos até depois das dez da noite juntos. Sim, eu estive em reunião mesmo, mas me reunindo à Julia, e me desligando de você.

Você nunca se incomodou com nada disso, percebe? Ela sempre soube que eu sou, ou era, casado. Mulheres costumam olhar para os dedos até mesmo antes dos olhos, quando lhes convém. Mas eu mesmo falei sobre isso no dia do nosso primeiro beijo. Ela entendeu e disse que se eu estava buscando um amor no cinema era porque não tinha em casa.

Acho que não preciso dizer mais nada. E acho que, mais do que nunca, você vai ter assunto para conversar com a sua família, se é que algum dia faltou. Te amo. Não me odeie.