Carta aberta a um amigo            
 
Caro amigo;
 
Torço para que esta carta não seja enfadonha a sua leitura (mas temo que ela o seja). Desta vez vou falar de mim, não que seja naturalmente um assunto importante para nós dois. Não espero e nem desejo de ti nenhuma especial condescendência, benevolência, nem mesmo indulgência ou qualquer tipo de aprovação, escolhi-o como amigo pelo que és e pelo que constróis, e não pelo que de mim pensas. Talvez me perca em certa forma de desabafo, talvez exponha um certo ar de revolta, mas como me conheces, jamais depositarei neste texto algum espirito de desilusão.
 
Como bem sabes, tenho me esforçado em abolir de meu dicionário de vida o termo e o sentimento de esperança. Busco fazer de minha vida um feliz (dentro do humanamente possível) passear pela desesperança. Nada tenho contra os esperançosos, mas temo sinceramente por algum sofrimento que eles poderiam não sentir, posto que o final da esperança é sempre uma bifurcação entre alcançar ou não alcançar o esperado, e infelizmente, o que a vida tem me mostrado é que na maioria absoluta das vezes, o final mais comum é não ter encontro com o, por longo tempo, esperado. Infelizmente o poder civil e religioso induz-nos firmemente a ter esperança, pois esta nos acalma, domestica e inibe nossa possível revolta, que poderia nos levar a agir, a ousar transformar ou a se negar a aceitar sonhos como verdades. Desta forma, faz algum tempo que fiz da esperança um nada em minha vida. Busco me concentrar no presente, e deposito minhas energias em realizá-lo o mais plenamente possível, entre muitas outras coisas porque sequer sei se aqui estarei quando leres estas miseras palavras, ou mesmo não sei se estarei vivo sequer para pelo menos terminar esta carta. Vivendo o presente busco satisfazer-me com o que tenho e com o que me é possível possuir, realizar, construir, aprender, dividir e deixar de exemplos para meus filhos e a quem mais puder interessar. Larguei de mão, ou tento largar de mão, qualquer esperança por tudo aquilo que não está ao meu alcance, ou que de mim não dependa para consegui-lo (isto não significa que abri mão de sua busca, continuarei lutando pelo que quero, pelo que desejo e pela transformação da sociedade, mas não depositarei esperanças frágeis em conseguir o que somente de mim não dependa, continuarei ousando ser obreiro da transformação que entendo certa, e o que conseguir será muito bem vindo). Como disse, vivo o presente como posso, com o que posso, e para aqueles que possa ajudar. Vivo o presente com imenso amor a vida e com afeto pelos seres humanos, sem me perder em sentimentalismos ou sonhos impossíveis. Vivo o presente na certeza de que mesmo sozinho sou capaz de algo fazer e conseguir, se não a transformação total, pelo menos a demonstração de que temos que algo fazer, e quem sabe assim conseguir algum eco, mínimo que seja, na sociedade.
 
Não gostaria que você me tomasse como presunçoso, pedante, arrogante ou rebelde sem causa, sei de minhas limitações, apenas não me curvo imediatamente a elas. Tento muito ter um comportamento minimamente digno mas liberto em meu pensar, tento ser um livre pensador, mas nunca um libertino agente de meus animais interesses, tenho meus princípios, mas até estes estão abertos a reformas e evoluções, sendo hoje um pouco diferente do que ontem fui, mas tendo como linha mestra a dignidade social e humana e um sincero enorme amor pela vida, não pela minha vida ou dos meus, mas sim em um escopo aberto pela vida como um todo, mas nem mesmo limitada sequer apenas a vida humana. A natureza, e a vida como espetáculo maior desta natureza, são para mim a maior fonte e o maior alvo de meu amor, que humano enquanto origem, natural enquanto caminho e universal enquanto destino.
Não sou orgulhoso para não aceitar o que terceiros possam me dar, ou o quanto eles possam me ajudar, a questão é não esperar que quem quer que seja me ajude ou me dê algo. Como ser social que busco ser, sei que devo, e tenho de ajudar aos outros. Sei também que outros, ao longo do meu realizar o presente, me ajudarão também, apenas não direciono minha vida e minhas energias nesta esperança. Entendo assim que esperar o que não está ao meu alcance, ou aquilo que não seja diretamente alcançável por meus meios não faz parte de meu planejamento. Assim, aboli muito de meu desespero e da frustração de não ter ou não alcançar o alvo de uma esperança, que é frágil posto que de mim não dependa, não estando ao meu direto alcance, pois se o tivesse eu o realizaria, e não necessitaria nada da esperança.
 
Por favor, não me entenda como imediatista, sei da necessidade de esperar, mas sem esperança. Esperar, e ter esperança, são sentimentos bem diferentes. Muito da vida requer tempo para amadurecimento, requer tempo para se formar ou mesmo para acontecer. Esperar no sentido de aguardar que o tempo certo ou minimamente necessário para que algo aconteça não tem nada a ver com ter esperança de que algo, que de mim independa, possa acontecer para comigo ou para outro alguém. Sou, dentro da normalidade, paciente, e sei esperar. Esperei nove meses para que cada um de meus filhos nascessem. A cada momento fiz o que pude para que minha esposa e o feto/bebê que nela se desenvolvia pudesse nascer bem, mas mesmo neste caso não subjuguei o trabalho que poderia fazer por nenhuma esperança. Não tinha assim a esperança que ele nascesse bem independente do que pudesse fazer, estava preparado para filhos saudáveis e também para filhos imperfeitos, seriam meus filhos de qualquer forma e eu os amaria. Sei muito bem que sempre estamos sujeitos as fatalidades e a aleatoriedade de eventos externos que podem ajudar ou, ao contrário, atrapalhar ou mesmo destruir.
 
Entendo que todo pai e toda a mãe, saudáveis mentalmente, esperam (aguardam) que seus filhos nasçam saudáveis. Eu não era diferente. Durante toda a fase de gravides tive inúmeros momentos felizes. Tive a felicidade da notícia da gravides, da primeira audição sinfônica de seu coraçãozinho batendo velozmente, da visualização da primeira imagem intrauterina de nosso bebê com a primeira ultrassonografia (revi esta gravação centenas de milhares de vezes), a compra do primeiro sapatinho, da primeira roupinha, da primeira fralda, da primeira mamadeira, da primeira chupeta, da montagem de seu quartinho, da escolha do seu nome e coroada com a felicidade maior da participação no parto, podendo vê-los nascer em primeira pessoa e em primeira mão (estava lá quando meus filhos nasceram, e recomendo que todos os pais também façam questão de lá estar quando do nascimento de seus filhos). Também tive sofrimentos vários (a vida é assim mesmo), tive medo do processo de gravides ter alguma intercorrência que levasse a um aborto ou a uma má formação, tive medo até de não estar a altura de um pai que ele merecessem. Vivi cada momento como único que é, e como maravilhoso que era, planejei algum futuro (abrir mão da esperança não significa abrir mão de algum controle sobre o futuro que não para de chegar, com atitudes e ações no presente que realizo), mas em momento algum depositei energias, lágrimas ou suor em alguma esperança. Torcia pelo melhor, mas estava (dentro do possível) preparado para tudo.
 
Dentre os sofrimentos, um em particular, ocorrido na gravides de minha amada filha, foi especialmente sofrido. Susto. Dor. É lógico que sofri. Chorei como criança. Mas tudo não passou de um susto. Em sua primeira ultrassonografia, minha filha foi diagnosticada como portadora de má formação no crânio e era assim uma criança com hidrocefalia. O baque foi enorme, o mundo desabou, mas isto não me levou a modificar minha forma de pensar. Esperança, não preciso dela. Pelo contrário, aumentou minha força e atitudes de tudo fazer para se possível reverter o caso, e se impossível fosse, recebe-la em um parto com o máximo de amor possível, e pelo maior tempo possível que ela sobrevivesse.  
 
Com o apoio de um obstetra fantástico, que procedia partos pelo método “nascer sorrindo” (conhecido como parto Leboyer) (meus dois filhos nasceram com variantes necessárias deste método) me indicou um especialista em imagem e som, e intercedeu diretamente com ele para uma consulta urgente. Firme em minha posição, mas destruído por dentro, fomos na manhã do dia seguinte para o consultório. Lá chegando, ele já nos esperava, e a consulta foram os mais longos cinquenta minutos de minha vida. Minha esposa, e eu a acompanha-la, trocávamos sucessivamente de cômodo, de maquinário, de exames e de equipamentos. Eu nem imaginava que existiam tantos equipamentos para acompanhar a imagem da formação do cérebro e do crânio, e o mapeamento das cargas elétricas do cérebro de um bebê ainda no útero de uma mãe. Esta é uma hora em que me revolta ver como os ricos possuem as “mesmas” (mentira) oportunidades dos pobres, como afirmam falaciosamente os defensores do neoliberalismo econômico, do capitalismo selvagem e absurdo que manda e desmanda no mundo.
 
Sou péssimo de nomes, mas este especialista que vi uma única vez, por curto espaço de tempo, jamais esquecerei o seu nome: Dr. Baião.
 
Durante toda a consulta, não obstante uma educação premiada (ouvia atentamente tudo o que ele falava), mas ele não expunha nenhuma informação referente a minha filha ter ou não hidrocefalia. Terminado o exame, ele mais uma vez muito educadamente pediu que retornássemos ao dr. Guilherme (obstetra) que estaria recebendo eletronicamente o seu laudo. Como do laudo ele nada falava, com certo medo, atrevi-me a perguntar: Doutor, o que o senhor percebeu, o senhor pode nos falar? Estava nervoso e o pensamento estava bastante embaralhado, e acabei perguntando de uma forma um tanto grosseira, “ela vai morrer”? (hoje vejo como uma pergunta idiota, mas no calor do medo e do nervoso, foi o que saiu. Todos morreremos um dia, mas o que eu queria perguntar era na verdade ela vai morrer de hidrocefalia?). Ele fez um breve silencio, deu um sorriso maroto e falou: “ um dia vai sim, mas não será de hidrocefalia, sua filha não tem nada, ela é perfeita”. Eu queria abraçar o doutor Baião, jogá-lo para o alto, rodar feito criança.... Minha filha estava perfeita...
Ele interrompeu e falou que era um absurdo que algum colega dele tivesse dado aquele laudo (que ele tinha lido antes da consulta), e como era amigo do doutor Guilherme, questionou-me se queria processar a clínica e o especialista que assinou o laudo, ele colocava os advogados da clinica dele ao meu dispor. Eu respondi que não, bastava que minha filha estivesse boa... Até hoje me divido quanto a ter ou não processado, fico imaginando que talvez outros pais tenham tido laudos incorretos também. Mas não o fiz.
 
Escrevi tudo isto para dizer apenas que não sou diferente de ninguém, muito menos melhor que qualquer outro, abolir a esperança não me retira a dor do sofrimento. Todos sofremos por algo. Agora, como superei aqueles dois dias, sem me perder ou me agarrar a esperanças, entendi que dela não preciso.
 
Tenho total consciência que como ser social dependo de muitos, como muitos também de mim dependem em algum nível. Sei esperar o tempo necessário para que cada ação possa ter efeito, mas relego qualquer esperança a um nada.
 
Amigo, não sei se estou certo ou errado. Sei que é assim que penso minha vida, vivendo o presente, agindo e construindo o que posso, aceitando o que tenho e o que me é possível ter e fazer, acolhendo de bom grado o que não posso ter, mas nunca abrindo mão de tentar e de construir caminhos que me permitam chegar a lugares que podem até parecer impossíveis a primeira vista, sem nenhum sentimento de esperança.
 
Meio revoltado (infelizmente não o suficiente), meio contestador, avesso totalmente as religiões, mas nunca aos religiosos que são meus irmãos em espécie, busco assim ser racional, crítico e analítico, busco imbuir-me da máxima integridade moral que me for possível, avesso totalmente aos dogmas, aos preconceitos, as autoridades do saber, as revelações, ao conformismo, as ordens insanas, as catequeses, as verdades preestabelecidas, não busco a verdade apenas dos fenômenos, que são superficiais e que muitas vezes nos levam ao fanatismo, as pseudociências, ou ao fundamentalismo. Sou um eterno questionador de mim mesmo e das coisas que me cercam, eternamente com boas pinceladas de ceticismo. Busco eternamente meus eus reais, busco a realidade que está sob os fenômenos e se encontra nos mecanismos, nas engrenagens, nas teorias e nas leis naturais.  Amante da vida e da natureza, amo a ciência não como dogma, mas como fonte de conhecimentos. Tenho total consciência que a ciência nada cria, e nem pode criar, pois enquanto ciência séria e verdadeira ela é apenas e tão somente conhecimento, saber, entendimento e modelagem do que aqui já está.
 
Amigo, não desejo que este texto tenha algum poder de catequese, (por princípio não gosto de catequeses pois creio que as pessoas é que devem ter a curiosidade de buscar, de aprender ou de pesquisar, discernindo fontes próprias das fontes impróprias), mas se este texto pelo menos te fizer pensar um pouco sobre o conceito da esperança, suas virtudes e fraquezas, seus usos humanos, políticos e religiosos, ou se este texto te servir para abrir sua curiosidade, visando que possas imprimir um estudo externo e interno, mas profundo, já será o bastante para me alegrar. Mas este não foi o principal motivo desta carta, ele foi o de realmente expressar um pouco do que sinto e do que penso, pois de diversas formas fui criticado como frio e insensível por não crer e aceitar a esperança. Até mesmo de mentiroso fui acusado.
 
Amigo, não sei se tivestes paciência para chegar até aqui, mas mesmo que não tenhas tido tempo ou paciência para fazê-lo, torço muito para que estejas bem de saúde física e mental, e que seu espirito mental e pensante possa estar saudavelmente feliz.
 
Até breve;
Do seu amigo, Arlindo Tavares

Arlindo Tavares
Enviado por Arlindo Tavares em 18/03/2013
Código do texto: T4194387
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