CRIME E CASTIGO: DE PINOCHET A SANTA MARIA

Caro Mayr,

a respeito de crime e castigo, justiça, injustiça, tenho algumas opiniões, que vou tentar colocar em poucas linhas. Nem tudo na vida tem explicação, por isso não vamos, (uso o plural porque dividimos o momento, como uma conversa), procurar explicar nada.

Vamos explorar.

SANTA MARIA.

Ninguém duvida que hoje vivemos num mundo globalizado. Ou como dizia MacLuhan do meu tempo de estudante:

“... o homem da sociedade elétrica viverá uma solidariedade profunda, a que liga os elementos de um mesmo organismo, implicando a participação na vida dos outros, o auxílio, a segurança e a transformação dos conflitos em dramas interiorizados por cada indivíduo”. (“MacLuan”, por Alan Bourdin, editora Melhoramentos, página 78).

Por isso a tragédia de Santa Maria – RS, doeu tanto. Foi como se houvesse atingido um nosso filho, um amigo, alguém muito próximo. E para piorar, jovens no melhor momento da vida, divertindo-se como deve ser, porque a juventude é algo tão rica e importante que deve ser vivida na sua plenitude, se não para nos preparar para a vida mediante experiências, pelo menos para termos o que contar aos netos no futuro.

Machucou muito a tragédia, passei um domingo arrasado, creio que aconteceu a todos que cultivam em si a humanidade.

Sabemos que não podemos ter, (caso contrário não faríamos outra coisa na vida), sabemos que não podemos ter obrigações morais e de solidariedade com toda e qualquer pessoa neste mundo tão vasto. Mas podemos, (e alguma coisa em nosso interior faz cobrança nesse sentido), podemos e devemos ter com aqueles que encontramos pelo nosso caminho e adentram no nosso espaço moral.

A televisão, (“A imagem, o som e a fúria”, segundo conceito de MacLuhan), trouxe aquele horror para dentro das nossas casas, para dentro do nosso intimo. Agora não podemos nos calar.

Esse raciocínio vale tanto para as tragédias pessoais, quanto para as tragédias políticas, como no caso do Pinochet e seus milhares de mortos, ao qual você se refere, embora os fatos estejam no tempo e no mérito longe um do outro.

PINOCHET.

1973 foi um ano que já começou diferente. Em janeiro termina a guerra do Vietnã, com a derrota americana (coisa inimaginável).

Nixon começa a dar sinais de que não tem mais paciência com os ditadores do terceiro mundo e os seus excessos contra os direitos humanos. Assina tratado de comércio com a China e de “distensão” com a União Soviética.

Em setembro de 1973 estavam acontecendo coisas diferentes na política sul americana. Os sonhos começavam a criar asas.

Ulysses Guimarães e Barbosa Lima Sobrinho lançaram suas candidaturas como “anticandidatos” à presidência do Brasil (pelo MDB), em oposição a chapa oficial dos generais Geisel e Adalberto Pereira dos Santos (pela Arena), com eleição indireta por um colégio eleitoral.

Havia discurso novo; luz no fim do túnel; e quem se dispusesse a discutir política e dar a cara para bater.

Nessa eleição, que criou oportunidade para a oposição se manifestar perante o povo, Geisel ganhou por 400 votos contra 76.

Estes 76 votos demonstrava que havia uma fissura na rocha; a partir de então, era só questão de tempo o retorno à democracia.

No Chile o médico Salvador Allende, era o primeiro político socialista/marxista eleito democraticamente na América Latina. Socialista, tinha discurso de vanguarda e acreditava ser possível instalar a justiça social dentro do sistema político do pais (essas são suas próprias palavras em entrevista no jornal El Clarin do Chile).

Ele tinha um ideal e espírito de luta.

O que não se esperava era um novo ditador, mas ele veio e esperança morreu aí, no dia 11 de setembro (será mera coincidência com a data de destruição das torres gêmeas?) de 1973 o Chile sofreu um golpe de estado comandado por Pinochet, que havia assumido o comando militar apenas dezoito dias antes do golpe (em substituição ao general Prats, democrata legalista, posteriormente assassinado a mando do próprio Pinochet).

O golpe tinha por finalidade viabilizar a implantação no país de uma experiência neoliberal na economia formulada por um grupo de economistas chilenos que ficou conhecido como “Chicago boys”.

A chamada "economia neoliberal", teve em Margaret Thatcher a última representante; e a turbulência geral na economia mundial de 2007 causada pela falência do Lehman Brothers, foi a sua última conseqüência.

No Chile e em todos os países em crescimento a economia neoliberal mostrou-se eficaz para os investidores, especuladores e proprietários, mas aumentou a desigualdade social.

Pinochet aboletado no cargo de ditador, mandou matar e torturar muita gente.

O eterno candidato Serra foi um exemplo de sobrevivente. Preso no Estádio Nacional foi libertado graças intervenção do major Lavaredos, chefe da “sessão estrangeiros” daquela prisão improvisada. Por esse ato de humanidade, e outros mais, (libertou muitos outros), Lavaredos foi sumariamente fuzilado na cantina dos oficiais, para servir de exemplo aos demais.

Recordo que numa entrevista, Serra diz que nunca entendeu o ato de Lavaredos. Talvez se procurasse entender, seria um político melhor.

Como todo ditador, Pinochet aproveitou a oportunidade que o cargo lhe oferecia para amealhar desonestamente fortuna pessoal.

Na esteira das investigações do atentado de Bin Laden em 11 de setembro, o senado americano apurou que Pinochet tinha, (e ainda tem no Riggs Bank, onde está bloqueado), depósito de 28 milhões de dólares, originados de desvio de dinheiro público.

O Riggs Bank sempre foi ligado ao dinheiro ilícito, (máfia, drogas, desvio de dinheiro público), inclusive a movimentação financeira de Osama Bin Laden. Tudo, repito, segundo apurou investigações do senado americano após o atentado de 11 de setembro.

Durante a guerra das Malvinas o Chile oficialmente declarou-se neutro. Mas deixou que a Inglaterra instalasse radares de longo alcance no sul do país para defesa e ataque das forças britânicas.

Além do que a Argentina teve que manter duas unidades militares importantes na fronteira chilena, temendo invasão (VI Elite e VIII Brigada das Montanhas).

Foi com o auxílio dos homens ligados a Pinochet que Thatcher mandou afundar o navio cruzador "General Belgrano", que matou 323 marinheiros todos na mesma faixa de idade dos mortos da boate Kiss de Santa Maria. O navio, que na prática não oferecia perigo algum, foi atacado fora da zona de exclusão e de guerra estabelecido pelo próprio governo britânico; e foi o único navio afundado após a segunda grande guerra.

Hoje, para os especialistas na matéria, (tem especialista para tudo!!!), é considerado como "crime de guerra", tal qual os campos de extermínio de Hitler.

Tony Blair sempre zombou dos conservadores chamando-os de “Partido de Pinochet” e “Partido de Pinocho” (Pinóquio).

Contudo, os chás e as bolachinhas que Pinochet e Thatcher desfrutavam juntos terminaram em agosto de 1998, quando o ditador foi preso sob as ordens do juiz espanhol Baltasar Garzón, ao tentar embarcar de volta ao Chile.

Foi a primeira vez que um chefe de governo foi preso pelo principio jurídico da jurisdição universal por crimes contra a humanidade.

Ficou na Inglaterra em prisão domiciliar, (como ainda hoje está o nosso glorioso juiz trabalhista “Lalau”), e só voltou ao seu país em 03 de março de 2000, sob alegação humanitária de que estaria gravemente doente.

Justificativa que é uma incoerência (razões humanitárias para Pinochet?) e uma mentira como ficou provado no judiciário chileno posteriormente; além do que o outrora “todo-poderoso” teve que rastejar atrás de um atestado médico falso, como qualquer delinquente comum.

De volta ao Chile um ano e meio depois, Pinochet encontrou nuvens escuras no seu horizonte. Na sua ausência o sol continuou nascendo sem lhe pedir licença, o tempo passou, as cartas do baralho mudaram de mão e ele foi submetido a exames médicos e julgado capaz de responder pelos seus crimes e condenado a prisão domiciliar, decisão revogada dois dias antes da sua morte.

Quando morreu, o velho demônio respondia por mais de trezentos processos crimes.

No Chile a avalanche de processos criminais contra o ditador foi desencadeada por decisão histórica do juiz Juan Gozmán Tapia.

Nos Estados Unidos Pinochet foi condenado por crime fraude fiscal e falsificação de passaporte pela Subcomissão Permanente de Investigação do Senado.

NÃO HÁ CRIME SEM CASTIGO.

Diz um poema, cujo nome e autor não lembro, que diz que algum dia, no futuro, num determinado momento, todos terão um encontro para prestar contas consigo mesmo. E esse poderá ser o pior ou o melhor dos nossos dias.

Sendo assim, como de fato é, é bom lembrar Hannah Arendt, (autora de “Eichmann em Jerusalém, um relatório sobre a banalidade do mal”):

“A conexão entre História e Natureza de maneira alguma é uma oposição. A História acolhe em sua memória aqueles mortais que, através de feitos e palavras, se provaram dignos da Natureza, e sua fama eterna significa que eles, em que pese sua mortalidade, podem permanecer na companhia das coisas que duram para sempre.”

Eterno é o sonho humano de democracia e da justiça social, como pensava Salvador Allende.

Dormirão no vale das sombras Pinochet, Savonarola, Nero, Eichmann, Hitler e muitos outros, que só lembramos para alertar aos novos que eles existiram e que nunca mais voltem a existir.

Pois que, nossos atos é nosso destino.

JUSTIÇA

No “A colônia penal”, Kafka descreve:

“Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante desse guarda e solicita que lhe permita entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixá-lo entrar... O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível para todos, mas ao observar o guarda, com o seu abrigo de peles, seu nariz grande como de águia, sua barba grande como de tártaro, resolve que mais lhe convêm esperar.”; (“Diante da Lei” - 1914).

Há cem anos, o formidável escritor alertava para o fato que: "esperar é o que a Lei espera que façamos".

Semiologia, acho, é a ciência em que os símbolos (imagens) falam ao subconsciente.

Tudo no judiciário é semiótico, nele, (como nas catedrais e nas feições do Tártaro guarda da lei), tudo estruturado de maneira a despertar o sentimento de culpa.

Os prédios, suas arcadas, a beca negra, o ritual dos meirinhos e das audiências, recursos, atrasos, apelações, contrarazões, agravos, o salamaleque interminável com num jogo de espelhos, etc., servem para aflorar a emoção de que se a absolvição vier, chegará como benesse, nunca como reconhecimento do que é justo e direito.

Engana-se quem pensa que vive num mundo de certezas, de direito e de justiça.

E que prisão só existe para os outros.

Poucos compreendem esta linguagem.

Lei, justiça, judiciário, parecem sinônimos, mas são coisas absolutamente diferentes; (ajudem-me neste texto e procurem no dicionário).

Deriva dessa compreensão torta o descompasso entre o que o povo pensa e espera e o que o poder dita e oferece.

Para o pacato cidadão, (não só o brasileiro), a sensação é de que a justiça nunca vem; ou quando vem, chega atrasada.

Quer exemplo?

Diante do prédio do STF, em Brasília, a escultura em granito que representa a justiça, (deusa romana “iustitia”, obra do escultor de Alfredo Ceschiatti) está sentada, os olhos estão vedados (para demonstrar a imparcialidade) e a espada (símbolo da força que dispõe para impor a justiça) descansa no colo da imagem.

Não há balança.

Posso até estar errado, até porque nunca li nada a respeito; apenas refleti quando vi a obra de arte; mas o escultor já no tempo da criação da obra, (1960), desejava nos passar algumas mensagens:

“podem esperar sentados”;

“a espada não ameaça; descansa”;

“Equilíbrio? Esqueci em casa!”

Escultor e pintor tem sempre preocupação de passar mensagem secreta, que tem caráter eterno e pode ser compreendido por todas gerações, como num jogo de sombras.

Michelangelo fez muito disso no vaticano. Indico, para quem tem interesse, leitura do livro "Os segredos da capela Sistina", dos historiadores Benjamin Blech e Roy Doliner (Editora Ponto de Leitura - edição de 2008).

Enfim, nós não podemos esperar tudo do judiciário e dos papas, (para ficar só em dois exemplos: guardas de nossa vida e o outro de nossa alma).

Nas fábulas (no sentido de parábolas) de Fredo, filósofo nascido vinte anos antes da era cristã, há uma passagem (“Hércules contra a corrupção”), onde descreve-se:

“Quando Hércules , recebido no céu entre os deuses, por causa da sua virtude, ao saldar os deuses que o cumprimentavam festivamente, diante de Plutão, filho da Fortuna, desviou dele os olhos. O pai, Júpiter, perguntou pela razão. Respondeu Hércules: “Eu o odeio, porque é amigo dos maus e, ao mesmo tempo, com o lucro que lhe é oferecido, corrompe todas as pessoas”.

Como se vê, o desprezo pelas pessoas que se corrompem, como as de Santa Maria e como Pinochet não é nova.

Fez sempre parte do imaginário humano, pois que, quem assim age, ofende o verdadeiro espírito da natureza e da humanidade.

Essas tristes pessoas já foram julgados pelas conseqüências; um dia terão um encontro consigo mesmo e não haverá o que alivie as suas consciências.

Entretanto, o cidadão comum, como eu, como você, quando assiste a tamanhas crueldades, não busca por justiça: busca vingança.

"Vingança, vingança, vingança, aos santos clamar", pois que os responsáveis por todas as mortes inocentes, tenham o destino das suas vítimas: sofram e morram, morram muitas vezes, porque o ódio é insano.

Nosso intimo, entretanto, acalenta o ensinamento firme e sensato de Martin Luter King:

“Onde a lei do olho por olho é praticada, no fim todos estarão cegos.”

E a primeira medida para salvar o mundo é cada qual cultivar em si atitudes internas honestas.

Um abraço Mayr, precisamos corresponder mais.

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Paulo Mayr escreve para o site IG. Tem um blog

com o nome "Boca no trombone"; indico visita.

Obrigado pela leitura.

Araçatuba-SP, 04/fevereiro/2013.

Falo muito... falo muito...

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Sajob
Enviado por Sajob em 05/02/2013
Reeditado em 27/02/2013
Código do texto: T4123683
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