EU ESTAVA NA BOATE KISS, ANTES DE MORRER ASFIXIADO....

Meu nome não importa. Estou escrevendo este relato para servir de alerta a todos que vivem neste mundo achando que terão outra chance ou terão outro dia para fazer as coisas certas, para viver o que tanto desejam, para dizer o que tanto gostariam ou mesmo para usufruir da felicidade que tanto almejam.

Eu iria completar 24 anos na semana que vem. Estudava Direito na Universidade de Santa Maria no Rio Grande do Sul. Nasci numa família de classe média e meus pais me deram o essencial para que eu lograsse êxito nos estudos e ingressasse na carreira dos meus sonhos. Só faltava um ano para me formar. Estava sonhando com o dia da minha formatura em que meus pais estariam orgulhosos de mim, minha namorada, que logo se tornaria a minha esposa, (era esse o nosso plano), meus amigos e meus familiares – todos a quem eu amava estariam na celebração da minha conquista. Mas, infelizmente, eles não terão mais essa satisfação, nem eu. Não fui capaz de mudar o meu próprio destino e não entendo a razão de tudo aquilo ter acontecido. Ou pelo menos, não entendia durante aquela madrugada quando o fogo começou a se espalhar pelo teto da Boate Kiss , onde eu e meus colegas de faculdade estávamos assistindo a um show.

Como todo jovem, gosto de sair com meus amigos para me divertir, dançar e tomar uma cerveja. Minha namorada não pode ir conosco pois estava muito resfriada. Eu me lembro o quanto insisti para que ela fosse, mas ela foi firme... parecia estar adivinhando aquela tragédia. Mas, ainda assim, ela não me impediu que eu fosse. Até brincou comigo, dizendo para me comportar, pois sabia que havia muitas garotas no evento e que eu não deveria “dar mole” para elas. Prometi que me comportaria e fui, com um sentimento de pesar. Eu hoje sei que deveria ter abraçado mais a minha namorada, deveria ter dito a ela mais vezes o quanto a amava, deveria ter sido mais generoso, deveria ter me doado mais a ela. Vejo que agora isso é muito tarde. Já não há mais tempo.

Tudo o que lembro é que ao ver o fogo se espalhando pelo teto e pelas cortinas do salão da boate, pensei nela, nos meus pais, nos meus amigos e tentei , como todos, encontrar uma saída. O instinto de preservação nessa hora fica aguçado e tudo o que queremos é escapar a qualquer custo. Quando tentei abrir caminho no meio da multidão em direção à porta principal, havia uma verdadeira muralha à minha frente. Calculei que se tentasse chegar lá, morreria queimado ou asfixiado. Olhei para os lados e vi gente correndo na direção dos banheiros. Sim, lá havia água e com certeza vitrôs que poderiam ser quebrados e deste modo escaparíamos. Foi meu grande erro. Não havia tais janelas de escape nos banheiros. Quando consegui chegar lá, havia dezenas de pessoas tentando voltar, umas pisoteando as outras, desnorteadas e desesperadas. Lutavam pela sobrevivência a todo custo. Todos queriam viver, escapar.

Deveria ter extintores de incêndios funcionando. Não estavam. Deveria existir várias saídas de emergência. Não havia. A fumaça tóxica começava a entrar por minha garganta. Meus olhos começaram a arder e eu comecei a sentir tontura. Era uma sensação estranha morrer daquele jeito. Até o último instante eu achei que conseguiria escapar. Mas, foi naquele momento que veio sobre mim uma avalanche humana. Centenas de pessoas passaram sobre meu corpo caído ao chão. Meus pulmões reagiam ferozmente tentando expulsar a fumaça, eu tossi desesperadamente tentando respirar. Minha garganta estava cheia de fumaça e não havia mais oxigênio chegando ao meu cérebro. Eu não tive mais forças para reagir. Tudo o que queria era descansar. E foi o que fiz.

Dizem que no instante da nossa morte a gente vê passar em nossa mente em segundos um filme de tudo o que vivemos. Na verdade eu só pensei naquilo que não teria mais tempo para viver. O que eu vivi era passado, mas eram os meus sonhos não realizados que me fariam falta. Eram nos sonhos dos outros que eu faria falta. Lembrei de ter brigado com meu irmão na semana passada por que ele amassou o pára-lama do meu carro. Eu deveria ter sorrido e perdoado. Não foi culpa dele. Lembrei da viagem ao exterior que não fiz, pois queria economizar para a formatura. Será que eu deveria ter ido? Lembrei também das coisas que tanto sonhava fazer quando criança e adolescente, como andar de patins e surfar, mas, não fiz. Lembrei do quanto tinha planejado sair de um fim de semana para acampar com minha namorada, mas sempre adiava. Os estudos eram mais importantes. Lembrei que sempre gostei de cantar e tocar, mas nunca encontrava tempo para essas coisas.

Agora eu vejo que deveria ter procurado mais equilíbrio em minha vida. Não deveria ter radicalizado em nada. Deveria ter feito de tudo um pouco, sem abrir mão de coisas importantes. E agora, enquanto morria distante das pessoas que eu amava, tudo o que eu queria era ter a chance de fazer tudo correto... se eu tivesse pelo menos mais uma chance. Mas eu não tive. Estou escrevendo esta nota póstuma para que você reflita sobre sua própria vida. No dia em que você a estiver perdendo será tarde demais, a não ser que você tenha vivido de verdade. Infelizmente, eu não vivi. Eu achava que ainda teria muito tempo.

Assinado: Uma Vítima das Circunstâncias.

(UMA HOMENAGEM A TODOS OS QUE MORRERAM NO TRÁGICO ACIDENTE NO DIA 27 DE JANEIRO DE 2013, NA BOATE KISS EM SANTA MARIA – RS.)

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