Carta de um velho moribundo alemão, obá de Xangô, após um infarto, à esposa.

Berlim, 12 de outubro de 2011

Forte dor de cabeça seguida de desmaio. Só isso que me lembro. Não vi o sangue no lençol, nem seu grito, nem os paramédicos, talvez, de longe, o barulho da sirene da ambulância misturado às orientações do doutor e a sensação da adrenalina injetada na veia. Mas nem disso tenho certeza. É bem possível que essas recordações tenham sido todas criadas depois, a criatividade sempre busca tampar os buracos da memória.

Lembranças seguras, tenho apenas de abrir os olhos e ver o seu rosto se iluminando: “Doutor, ele acordou!” O médico do outro lado do corredor, invadiu o quarto, lanterna no olho, língua para fora, perguntas de praxe: “Sabe onde está?”, “Sabe quem é o senhor?”, “Reconhece essa moça?”.

As respostas: “Num hospital, acho”, “Joachim Reus”, “Minha esposa”. O médico escreve na prancheta sinalizando que está tudo bem. Tivesse eu realmente bem, não poderia responder com segurança a nenhuma das indagações. Não sei com certeza que lugar é esse que estou prestes a deixar. Saori, senti hoje a morte tão próxima de mim. Era como um inseto voando sobre a minha cabeça esperando uma distração para me picar. Saudades da vida, vontade de levantar dessa maca, sair correndo e viver tudo de novo. Pudesse escolher, quereria viver de novo e outra vez e mais uma e outras tantas. Como um ator a encenar dia após dia a mesma peça, no mesmo palco com os mesmo colegas. Pequena, me despeço do mundo contrariado. Nisso, estou em paz. Se o espetáculo acabou foi por desejo do patrocinador, não meu.

“Quem é o senhor?” Não sei. Qualquer outra resposta é mentira. Fui jovem, adulto, velho... E agora sou quase um morto. Uma figura pálida ressuscitada pela adrenalina e pelo desfibrilador, mantido de pé por tantas drogas no corpo que sou um híbrido entre o vivo e o morto. Um homem que não é capaz de se manter pela própria força. Estou sob o portal que separa os dois mundos, mas sem a possibilidade de poder escolher voltar. Só posso seguir, e seguindo deixo espaço para a última pergunta: “Reconhece essa moça?”.

Saori, o que a faz diferente de outras moças? De longe, posso afirmar, somos todos iguais. É de perto quando as relações de afeto se estabelecem que as pessoas nos nascem. Reconheci de imediato aquela jovem de feições asiáticas na minha frente. Pequena, o afeto, somado ao cotidiano, desnuda ao outro os nossos pensamentos e desejos. Somos tão íntimos que eu saberia descrever toda a angústia que palpitava no seu coração quando abri os olhos. Ah, querida, agora tenho certeza: o amor é o tabuleiro de ifá* do espírito humano.

Abraços,

Joachim Reus.

* tabuleiro no qual se jogam os búzios para desvendar o futuro.