Os anjos caídos - Carta 038
Carta 038
Assunto: Os anjos caídos
Um seminarista de Porto Alegre indaga sobre “o pecado dos anjos”
1. O pecado
Os livros canônicos nada falam sobre o pecado e a queda dos anjos, pelo menos explicitamente sobre as razões e a cronologia da ruptura. Na epístola de Judas (v. 6) há uma breve referência, citando os apócrifos do século I, combatendo a mística irracional dos gnósticos. São Pedro dedica uma linha ao assunto: “Deus lançou nos abismos do inferno os anjos que haviam pecado” (2Pd 2,4).
Como teria sido o pecado dos anjos? Como ocorreu a ruptura entre o bem e o mal? Na verdade, existem duas linhas básicas de exegese para tentar trazer luz sobre o assunto. A primeira, de fundo judaico, afirma que o pecado dos anjos fora o de se relacionarem sexualmente com mulheres (cf. Gn 6,1-4). Originando uma geração de seres maus (ou gigantes). Nessa perspectiva, eles perderam poderes e direitos, por se terem deixado seduzir pelas “filhas dos homens”, e por conta disto deixaram os céus, sua morada, abandonaram seu Senhor que, iniciando seu pro-cesso de destruição, guardou-os presos em cadeias eternas, sob as trevas, para o julgamento do último dia (cf. Jd 5-6). Como castigo pelo pecado (relações sexuais com as filhas dos homens), esses anjos teriam sido provisoriamente encerrados nos infernos para serem depois lançados no fogo eterno, até o dia do juízo final.
As antigas literaturas rabínicas de Israel (séc. III a.C.) falavam em nefilim (os caídos, fracos, derrubados), como seres espirituais que haviam cedido às tentações do pecado e por isso expulsos das cortes celestes. Talvez por conta desse evento, e fiel a essa exegese que São Paulo tenha perguntado aos crentes do seu tempo: “Vocês não sabem que haverão de julgar os anjos?” (1Cor 6,2). Também para eles é esperado um juízo (21,22). A exegese mais aceita, entretanto, é a de Santo To-más de Aquino, que afirma que o pecado dos anjos que caíram foi a soberba. Embora se possa até relacionar a primeira hipótese com a soberba, a maioria dos exegetas, a partir da escolástica, prefere colocar sob a palavra soberba e vaidade, a ambição, o orgulho e a rebeldia.
Movidos pela soberba – tal qual Adão e Eva – os anjos quiserem ser iguais (ou melhores) que Deus. Segundo a doutrina dos Pais da Igreja, eles pecaram por-que tinham liberdade. O dominicano Bañez defende ardorosamente esta tese: “Qualquer que seja a opinião que se siga, é certo que, em todo caso, os anjos foram submetidos a uma prova. Não se sabe do que constou nem o quanto durou essa prova. Sobre o pecado dos anjos, a Revelação se limita a fazer breves indicações. Se todo o pecado começa com a soberba (Ecl 10,12s), também o pecado dos anjos deve ter assim iniciado”.
Embora as Sagradas Escrituras não relatem explicitamente a revolta e a queda de Lúcifer e seus anjos, há indícios dessa expulsão que, vinculados a pe-quenos relatos, nos podem dar a pista daqueles fatos. Por que razão então o ha-giógrafo fala em caos? Lúcifer era o Anjo da luz: lux (luz) + fero (trazer), aquele que traz a luz. Pelo pecado da soberba, certamente, aquele que era chamado, por sua beleza, de “estrela da manhã” (cf. Is 14,13s; Jó 38,7; Ez 28,12-17 e Eclo 16,7) foi por Deus lançado nos abismos, tornando-se o anjo caído (cf. Ef 2,2; 6,12) de quem fala São Paulo. A queda de Satã também é mencionada em Jd 9.
Esta revolta liderada por Lúcifer arrastou consigo a terça parte das cortes celestes (cf. Ap 12,3s). O ato criador de Deus, a partir dos chamados “seis dias da criação”, é como que uma recriação, pois dentre os anjos, criados anteriormente para serem perfeitos, houve uma rebelião. Também São João (8,44) atesta o peca-do e o castigo deles.
O Catecismo dedica, no capítulo “A profissão de fé” um tópico inteiro à que-da dos anjos, relacionando essa queda à de Adão e Eva, nossos primeiros pais. Ao tentar Adão e Eva, o Maligno evidencia um reflexo de sua rebelião: “Vocês serão iguais a Deus” (Gn 3,5). Não existe arrependimento para eles depois da queda, como não existe arrependimento para os homens após a morte (Cat. 393). A mais grave consequência da conduta desses anjos caídos tem sido a sedução mentirosa através da qual eles tem induzido o rompimento da humanidade com Deus.
A partir da teologia patrística do século III, a Igreja começou a afirmar que Deus criou todos os anjos bons. Alguns, usando mal sua liberdade, e pelo pecado da soberba, se rebelaram, sendo expulsos do céu. Deus não criou os anjos bons e os demônios maus. Porque ele não pode criar o mal. Criou a todos bons; os demônios se torna-ram maus por decisão própria e pessoal.
A expressão demônio, para caracterizar o espírito mau data do século II dC. e se origina da palavra grega daimon, que quer dizer espírito, alma, interioridade e consciência. Nos filósofos pré-socráticos – e isto se constata no fragmento 79 de Heráclito – a palavra aparece como algo extraordinário. A partir da teocrasia hele-nista (fusão dos deuses do Olimpo), esta palavra passou e significar, além daque-les sentidos, um espírito fora do ser humano. A partir desta raiz, Aristóteles (†322 a.C.) cunhou o verbete eudemonia, como doutrina que considera a busca de uma vida feliz, seja em âmbito individual seja coletivo, o princípio e fundamento dos valores morais, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o ho-mem à felicidade
2. Potências sobrenaturais
Na hierarquia celeste, encontramos os coros de seres sobrenaturais aos quais a Bíblia se refere. Essas referências se encontram nas seguintes fontes: a) Virtudes (Dynamis – virtutis): cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; b) Potestades (exousias – potestatis): cf. 1Cor 15,24; Ef 1,21; Cl 1,16; c) Principados (arxé – prin-cipatus). cf. Rm 8,38; 1Cor 15,24; Ef 1,21; Cl 1,16; d) Dominações (kyriontes – do-minationes); cf. Ef 1,21; Cl 1,16; e) Tronos (Thronos – Throni) cf. Cl 1,16.
Assim, como não se pode estabelecer claras diferenças entre essas categori-as de seres invisíveis, igualmente não se pode afirmar que sejam eles anjos real-mente mensageiros e servidores de Deus. Há no Novo Testamento referências a seres sobrenaturais com traços nitidamente maléficos e até demoníacos (cf. Rm 8,38; Cl 2,15; Ef 2,6; 6,12). Dentre essas potências sobrenaturais se encontram narrativas que os revelam fiéis a Deus enquanto outras manifestam clara oposi-ção.
Embora constantes do elenco das potências sobrenaturais, esses seres so-brenaturais nem sempre podem ser identificados com os anjos, mensageiros de Deus. Tanto assim que São Paulo escreve que Cristo (e com ele toda a sua Igreja) há de submeter essas forças à sua autoridade (cf. Ef 1,22; 3,2; Cl 2,10; 15,20). Assim como não é prudente desprezar, é recomendada certa parcimônia no culto dessas entidades, evitando-se invocações e comunicações pois, se Cristo – e assim afirmam as Escrituras em diversas passagens – vai submeter e subjugar todas es-sas hierarquias celestes.
Quando São Paulo emprega a expressão katargéo (des-truir) para as potências invisíveis, fica sinalizada alguma advertência para nós. Assim, se Jesus destruiu (cf. 1Cor 15,24), despojou (Cl 2,15) e subjugou (Ef 1,21) essas potências, é porque elas são, no mínimo forças oponentes. Não parece claro? Tanto assim que na epístola aos romanos (8,38) o apóstolo nomeia em primeiro lugar os anjos e, depois deles, potestades, principados, etc.
Estou convencido que nem a morte, nem a vida, nem os anjos nem os prin-cipados. nem o futuro nem o presente, nem as forças das alturas ou das profundezas, nem qualquer outra criatura, nada nos poderá separar do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 8,38s).
A despeito dessa ambigüidade, é bom saber que algumas Conferências Epis-copais da Europa (a partir da Alemanha) incluíram essas potências celestes na “Ladainha dos Santos Anjos”.
3. Demonologia
Ultimamente, o saber das coisas misteriosas e proibidas tem fomentado uma busca pelos conhecimentos esotéricos, do satanismo e demais práticas de ocultis-mo, que em geral visam reduzir o sacro e o mistério ao nível do vulgar, impreg-nando manifestações verbais e literaturas grotescas, tais como profanação de coi-sas sagradas, rituais satânicos, orgias sexuais e celebrações cabalísticas.
Em contrapartida, grandes segmentos da sociedade, da dita intelectualidade e até dentre membros da própria Igreja costumam afirmar que o diabo não existe. A psicologia moderna (ou usando um termo depreciativo de Chartreux: o neopsicologismo) começa a afirmar que o demônio, pecado e inferno não existem, mas fazem parte de um conjunto de fantasmas gerado por uma cultura repressiva capaz de criar nas pessoas um acentuado complexo de culpa.
A esse respeito recordo a queixa de uma catequista, em uma comunidade do interior do Rio Gran-de, que foi advertida pela coordenadora (uma religiosa) para que não falasse em diabo, demônios ou inferno para não amedrontar as crianças e não contrariar suas famílias. A Bíblia não inicia falando no diabo, mas usa metáforas, como a serpente que veio tentar Eva (cf. Gn 3,1). A expressão tentador, atribuída a Satanás (de onde se derivou Satã, o adversário) tem raízes no árabe, vizinhos cananeus dos judeus, onde uma entidade capaz de por à prova a fidelidade dos homens se chama shaitan e possuía a forma de uma serpente.
Como conseqüência dessa ordem teológica, surgiu a expressão grega diábo-los (desordeiro) para descrever o procedimento dessas entidades: o que desune, o que causa desordem, aquele que acusa, o que seria traduzido, posteriormente, pelos LXX como satanás ou satã. Foi satã que criou dúvidas quanto à fidelidade de Jó. De todas as formas, satã, no Antigo Testamento, não representava ainda e propriamente um adversário contra Deus, mas um aliado deste para provar a fide-lidade do homem. Na verdade, segundo a descrição dos cronistas tratava-se de um ser ciumento da amizade de Deus com os seres humanos, e que procurava provar que estes não eram dignos daquela amizade, e que eram iguais a ele - satanás – cujas faltas o haviam excluído da amizade com o Criador.
No fim do século IV a.C. registra-se nova etapa de conceitos, quando Satã passa a ser nome próprio e de-signa não mais um mero adversário, mas agora um inimigo que vem perder o povo de Israel. Esse inimigo de Israel passou a se chamar diábolos (o diabo), quando a ele é atribuída a função de estabelecer desordens na sociedade, nas famílias e no coração das pessoas, tornando-se um acusador (a partir do século I a.C.), confor-me antigos textos, através dos quais a morte da humanidade é vista como conse-quência do pecado, que penetrou no mundo através dele (cf. Sb 2,24). Mesmo sem total apoio das Escrituras, pode-se suspeitar, afirmar até, que depois de criados, os anjos tiveram algum tempo de opção de exercer seu livre-arbítrio.
Seria nesta fase, quem sabe, que Lúcifer e seus seguidores se rebelaram, sendo excluídos da comunhão e passou a ser satã (adversário e acusador dos ho-mens. É certo e sabido que Deus não criou nenhum ser mau. O mal não faz parte de sua natureza nem do seu projeto criador. Na verdade, eles é que se tornaram maus e réprobos por opção própria. Esta teoria é esposada por vários Pais da Igre-ja e foram abraçadas pelo I Concílio de Braga (ano 560) no cânone 7: “quem diz que antes o diabo não foi um anjo bom feito por Deus (...) seja anátema” . Também Santo Agostinho fez colocações nesse mesmo sentido.
Afinal, os diabos existem? Sim, assim como os anjos bons e puros, eles exis-tem! Trata-se de uma realidade bíblica de todos os tempos e, em especial, reco-nhecida por Jesus (cf. Mt 25,41b), afirmada pela Igreja (IV Concílio de Latrão, 1215) e proclamada pela Tradição e pelo Magistério. Os espíritas negam a existên-cia dos demônios. Para eles trata-se de espíritos obsedados, atrasados, sem luz, que carecem de purificação e desenvolvimento. Quando se purificarem total-mente, irão se tornar “espíritos de luz”, iguais a Cristo.
O fato incontestável é que Satanás vive em radical e irreversível negação a Deus e ciúme de seu amor para com o homem. Como pai da mentira que é, ele procura inverter valores, mesclar verdades e mentiras e impor à criação um comportamento adverso àquele requerido pelo projeto de Deus.
No que se refere à atuação dos espíritos malignos no mundo, a afirmação básica do magistério eclesiástico é que sejam considerados como sedutores dos homens para o mal. Satanás é o tentador, simplesmente; dele provém toda a mal-dade. Ele é o intrigante refinado que perturba o equilíbrio moral das sociedades humanas. Trata-se de um feiticeiro traidor e astucioso que procura infiltrar-se em nós através dos sentidos, fantasias, instintos, pensamentos utópicos, falsos ideais desordenados no campo de nossas atividades, para levar a ruína nossa vida e nos-so agir. Sobre as realidades ontológicas do demônio, assim se expressou o papa Paulo VI:
O diabo é uma força atuante, um ser vivo, perverso e pervertedor, uma realidade assustadora, misteriosa e amedrontadora. Ele é o chefe de muitos seres espirituais que são somo ele, originariamente boas criaturas de Deus, mas que se afastaram porque se revoltaram e foram ao inferno. Quem nega a existência dessa realidade se coloca fora da doutrina bíblica e eclesiástica.
A tradição fala na vaidade e na soberba de Lúcifer como princípio de todo o mal. A vaidade de se considerar perfeito o levou à soberba e à revolta e, por isso, ele foi jogado no abismo (cf. Is 14,12-15; Lc 10,18). É controvertida a origem do nome Lúcifer. Uns afirmam se tratar de anjo da luz, outros, como vimos, aquele que tem (traz) a luz. Os demônios são referidos no Novo Testamento como anjos do diabo (cf. Mt 25,41b; 2Coe 12,7; Ap 12, 7ss). No original bíblico encontramos o termo é mámon (“vocês não podem ser escravos de mámon”). Esse mámon é uma entidade siro-fenícia semelhante a Plutão (deus das riquezas na mitologia Grécia) que dava toda a riqueza ao homem até destruí-lo. Os judeus encaravam mámon como uma entidade má que vinha para perder o povo sob a promessa de riquezas. São Jerônimo († 419) afirmou que o dinheiro é o esterco do diabo.
A Bíblia revela que os demônios se supunham instalados em tranquilidade e Jesus veio para perdê-los (cf. Mt 8,29; Mc 1,24). As Sagradas Escrituras nos apre-sentam inúmeras citações sobre os demônios, os anjos caídos, com diversos no-mes e qualificativos: a) Satã (ou Satanás, o adversário): Jó 1; Zc 3,1s; Mt 17,11; b) Diabo (do diábolos, o desordeiro): Mt 4,1; 13,39; Tg 4,7. Ap 20,10; c) Belial (ou Be-liar, o malvado): Jz 19,11; PR 6,12; 2Cor 6,15; d) Belzebu (ou baalzebub, o senhor das moscas): Mt 10,15; 12,37; Mc 5,22; e) Maligno: Mt 6,13; 13,19; Ef 6,16; 1Jo 2,13s; f) Homicida desde o começo: Jo 8,44; g) Príncipe desde mundo: Jo 12,31; 14,30; 16,11; h) O deus deste mundo: 2Cor 4,4; i) Mentiroso e pai da mentira: Jo 8,44b; j) Dragão: Ap 12,2; k) Antiga serpente (alusão a Gn 3): Ap 12,9; 20,2; l) Le-gião (porque são muitos): Mc 5,9; m) Asmodeu (o pior dos demônios): Também 3,17; n) Lilith, um demônio feminino (Is 34,14).
Santo Agostinho afirma que, se o demônio atuasse diretamente sobre os homens, não haveria justos. Existem limites impostos por Deus a essa ação malé-vola. Os anjos protegem o ser humano contra os assaltos do diabo. Eles dão o primeiro e decisivo combate às investidas infernais. O místico São Vicente de Pau-lo dá ênfase ao valor da oração – e em especial à matinal – para enfrentar os pode-res do mal. Hoje, como se sabe, há muitas tendências, nos meios científicos, e até na teologia, que colocam em dúvida ou mesmo negam os danos das práticas de-moníacas.
O neopsicologismo, já aludido aqui, afirma que não existe pecado, mas carências psicológicas e desvios patológicos de conduta. Ora, se não existe pecado, não há inferno e, por conseguinte, os demônios são seres irreais. E o que é pior: se não existe pecado a vinda de Cristo ao mundo foi em vão.
São Pedro adverte que o diabo, anda como um leão que ruge, sempre a procura de uma vítima a quem devorar (cf. 1Pd 5,8). Ao negarmos a existência dos demônios estabelecemos como que uma trégua com eles, E assim deixamos de estar vigilantes...
O autor é especialista em Angelologia (Parte da Teologia que estuda os Anjos), autor de vários trabalhos nessa área “Os anjos existem?” (Ed. Vozes, 1989, 2ª. edição), “¿ Angeles existen?” (Ed. Lúmen, Buenos Aires, 1999) e “Anjos, os mensageiros de Deus” (em preparo).