Pedaços
H.,
Deixei com você um pedaço de mim, como sói acontecer sempre que a vida me assusta ou propõe algum novo enigma. Falávamos sobre relacionamentos e as diferenças do olhar que homens e mulheres põem sobre o mundo e a própria vida. “Você está muito presa à realidade” – foi o que você disse. Seu comentário remeteu-me a outro que, apesar de aparentemente oposto, mais de trinta anos depois, me pareceu estranhamente igual... ”Sai do sonho...” disse meu outro interlocutor. O que os aproxima é menos o que significam (ou o que podem significar) que o sentimento que provocaram em mim. Solidão foi o que senti. A exata sensação de que, não importa o que eu pense, ou sinta, ou queira, ou o quanto queira comunicar o que me vai alma adentro, sempre haverá um desvio (ou a possibilidade dele) entre o outro e eu. E nem mesmo importa se esse outro é alguém que eu prezo, que eu amo ou admiro. Então, escrevo. Não porque assim me farei compreender, não porque tenha a ilusão de que, quem quer que me leia possa sentir o que sinto. Escrevo porque preciso dar vazão ao que sinto e penso. Escrevo porque preciso me ouvir, conversar comigo e chegar, eu mesma, a uma, a qualquer ou a nenhuma conclusão. Os pedaços que vou deixando por aí, com meus interlocutores, meus pares ou não, são como telas. Eu as olho e nem sempre parecem minhas, mesmo quando reconheço meus traços e as tintas que uso. Minhas telas, o que escrevo, são meus sonhos, minhas dores, meus amores, a minha realidade. Não saio e não fico presa. Transito por ela, busco conhecê-la, fazê-la minha e mais consistente. Isso dá trabalho. Homens e mulheres sentem, pensam, agem de modo diferente? Acho que sim, mas não porque são homens e mulheres, mas porque pessoas são diferentes. A ideia de pertencermos a alguém, a uma facção, a uma classe de indivíduos ou grupo social, o que quer que seja, é um brinquedo, uma ilusão para afastar o temor, a constatação de que somos sós. Por isso, ir ao encontro de alguém exige conhecer o caminho de volta para nós mesmos. Caso contrário, corremos o risco de nos perder como a pipa cuja linha se rompe.
Sei que isso tudo pode não fazer sentido algum, que é só mais uma das minhas telas e que amanhã ela pode não me dizer nada. Ainda assim, é minha e só quando eu a assumo é que posso entregá-la a quem quer que seja.
Deixo pedaços de mim com você, sempre quando a vida me assusta ou me propõe algum novo enigma.
Raquel Domingues Pires – 13/11/2012.