Pensei em amor, era uma hipótese.
Salvador, 27 de setembro de 2011.
Trinta e um anos se passaram desde que te vi pela primeira vez. “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, Renato repetia incessantemente ao microfone o hit da época. Olhei para você. Você tinha um ar distraído, como se quisesse gritar aos quatro cantos do mundo que ali não era o seu lugar, que o lema “sexo, drogas e rock’n roll” não significava nada para você. Nem pensei em me aproximar, o que diriam do bom moço com a menina má, de roupa escura e tênis velho? Segui a noite acompanhada dos meus amigos. “Jovens perdidos” era o que pensavam a nos ver bebendo, cheirando e quebrando as regras daquele tempo militar. Legião Urbana estava no auge, gritávamos em uníssono: “Que País é esse?”. Segui aquela noite pensando em me aproximar. De verdade. Enquanto você assistia ao show, lindamente, eu só olhava para ti. Mas eu não cheguei em você, afinal estávamos nos anos 80, não pegaria bem, não é? Mas eu esperei você chegar a mim. Esperei, esperei, esperei… Esperei. Para falar a verdade, acho que nunca esperei tanto uma coisa em toda a minha vida. Não foi naquele dia. Talvez não fosse para ser, as coisas tem seu tempo certo, como dizem por aí. Seguimos nossa noite separados, tudo bem, não é mesmo? Afinal era o último final de semana antes das aulas começarem, nada mais justo do que aproveitar. Entreguei ao destino o nosso encontro.
Você deve estar se perguntando o por quê disso tudo agora. Essa carta, essas lembranças, esse flashback mental que eu estou tendo ao escrever e até esse saudosismo que parece não ter fim. Hoje acordei pensando na bagunça que era a minha vida antes de te conhecer e me perguntei se, por um acaso, você ainda se lembra disso também e tão bem quanto eu. Você não deve se lembrar. Eu esqueço que essa mania é minha, que sou eu que sou assim, desse jeito meio inconformado com os fins. Não gosto de desvencilhar-me de nada e nem de ninguém, pois sempre achei que os laços feitos no passado, deviam ser eternos. E mesmo quando, por algum motivo, um dos lados resolvessem pôr fim neles e acabar com tudo, o outro deveria estar lá para apertar firmemente o nó e enlaçar uma história bonita outra vez.
Hoje, aceitei-me doer inteiro, até florir de novo. É primavera, e sempre soube que é na primavera que o amor floresce. É tempo de renascer. Re amar. Remar. Remar para um novo futuro e esquecer-se de águas enlameadas do passado.
Não era a estação das flores, lembro-me que era verão e que o sol lá em cima, parecia sorridente, a fim de esquentar corações frios, como o meu. Era o primeiro dia de aula e eu havia colocado as minhas coisas no fundo, como de costume. Seria tudo igual, pensei. Sentei-me e encostei a cabeça na cadeira, a fim de passar o tempo e esperar a primeira aula começar. O sinal tocou e o vi passar pela porta, meio apressado, querendo passar despercebido. Impossível. Definitivamente impossível. Lembro-me perfeitamente da sua mochila preta, surrada e não esqueço também do olhar que me lançou. Sei que a sala estava cheia e que todos conversavam alto, numa competição infame sobre quem teve as melhores férias. Eu não estava nem aí para eles, você também não. Pensei em pegarmos nossa indiferença e levá-las para um lugar a sós, onde juntas, elas poderiam se converter em algo maior. Pensei em amor, era uma hipótese. A mais bonita delas.
Nessa carta, pensei em dissertar sobre todas as coisas boas que aconteceram entre nós. Sobre aquele olhar na sala. Sobre o dia em que nos beijamos pela primeira vez. Ou também sobre o dia em que eu estava pensando em cometer uma besteira e você me disse que não, que não me deixaria naufragar tão fácil. O barco estava furado, nós sabíamos, mas você sempre me prometeu tampos e remendos e disse-me que não importaria o tamanho do furo que enfrentaríamos, mas que superaríamos juntos, estatelando cardumes de piranhas traiçoeiras que tentassem nos desviar da rota. E então ao me lembrar disso, lembrei-me também de coisas ruins, mas que foram necessárias para que as boas ocorressem. Passou pela minha cabeça, o jeito despretensioso no qual eu levava a vida. Você dizia que era só máscara de menina mimada que achava que ser rebelde e ter o cabelo desbotado era “cool”. Já eu achava que a vida era para ser aproveitada intensamente. E eu queria gritar e publicar em um cartaz qualquer o quanto eu me orgulhava por ser rebelde e ter o cabelo desbotado. Eu queria ser uma revolucionária e você era o tipo errado de cara que eu precisava ao meu lado, mas era assim que nos encaixávamos. Sei disso. E te guardo em cada memória. Jamais esquecer-me-ia também do dia em que fomos à praia, tiramos a roupa um do outro e depois rolamos na areia e permanecemos assim até que as ondas quebrassem e lavassem nosso corpo, infestado de areia. Depois nos abraçamos e passamos o resto da tarde, porque nos completávamos desse jeito, um sendo o oposto do outro. E seria assim para sempre.
Porque mesmo com toda a superficialidade aprazível que as festas, a cocaína ou a imprudência com os estudos me traziam, dentro de mim nada foi leviano. Nunca.
Já estou no fim dessa carta e fechando os olhos, consigo ver três imagens se sobrepondo. A primeira é a volta rápida que faço ao dia em que o levei para conhecer a minha mãe e então, à noite, a vi rezando e agradecendo por você ter entrado em minha vida e me mudado tanto. A segunda é você me noticiando o alistamento militar. E a terceira trata-se do papel de convocação que trouxe para mim, com lágrimas nos olhos. Recapitulei esse momento na mente milhões de vezes: o adeus, o choro e a declaração inesperada: “perpetuum”.
- “Perpetuum”? – Indaguei-lhe curiosa.
- Quer dizer para sempre em latim.
E então você se foi.
Chorei incessantemente ao colo da minha mãe, eu quis que você ficasse, mas percebi que era chegada à hora de ir. Hoje sinto saudade e de vez em quando recordo-me desses momentos, querendo cravar em mim migalhas desse passado que me prende, talvez por não ter se concretizado de forma plena, como eu queria. Mas também sei que o futuro ainda aguarda para ser escrito, eu tenho papel e caneta na mão, não quer me ajudar a escrever?
Helen.