Julieta, Ismália e Alphonsus
Querida Julieta Capuleto,
Escrevo-te porque me faltam bons interlocutores mais contemporâneos. E sinto dores quentes, pobres e incolores. E devo dizer, não há muito entendimento por aqui. Não há tempo para amenidades. Vivemos correndo, ocupados, mecanizados e armados. E isso me incomoda tanto...
Inefável. Eu não sei o que isso significa, mas é uma palavra que parece se encaixar. A verdade é que acordei hoje em urgência, naquele estado pré-demência de falar.
Vivo de Ismália,
Quanta agonia!
A mente me falha,
Psico-ilogia
Julieta, eu tive um sonho. Um sonho absolutamente perturbador e desde as horas mais baixas me pus a devanear. Eu não pedi pra sonhar, meu Freud! E não pedi pra acordar, meu Deus! E é por isso que eu me sinto pontualmente desrespeitada e tão cruelmente injustiçada nesse joguinho psíquico de azar.
E qual é, afinal, sua teoria sobre o sonho? Passei algumas horas pensando nisso e resolvi verbalizar. O primeiro ponto é que vida e sonho parecem duas dimensões de existir. Qual seria, então, o critério para distinguir os dois? Passamos mais tempo acordados, isso é fato. Talvez seja esse o principal aespecto, não? Mas e se você dormir durante dois terços do dia? Estará autorizado a subverter os conceitos?
Tente entender o que digo, falo com o espírito e todo o meu coração. Talvez você venha, então, me dizer, com sensatez, que é possível dormir sem sonhar, mas não dá pra sonhar sem viver. E eu te peço, reconsidere, Julieta. Dentre tantos olhos abertos, parece haver inúmeros sonâmbulos. Não podem ser conscientes os que promovem jogos de guerra. Nem me parecem exemplos de lucidez os protagonistas de tablóides. Estão acordados, mas, honestamente, vivem? E vivem os miseráveis? E vivem os perseguidos, os adoentados e indignados? Estão de pé, abrem bem seus olhos, mas não sei se vivem.
E ademais, quem foi que disse que há o dormir sem sonhar? Por que é que a falta de sonho não pode ser um sonho também? Se eu fingir que sonho de dia e que só vivo no sono, alguém poderá me questionar? Pergunto a você, Julieta, por que ninguém a meu redor parece muito disposto a divagar.
De mais a mais, te explico, tive essa noite um sonho maravilhoso e absurdo. Havia alguém cuja aparência era empréstimo de uma pessoa real, mas cujas atitudes, palavras e trejeitos eram a manifestação adocicada de cada anseio do meu coração. É que ele invadiu meu quarto, falou sobre poesia, sorte e fez pedidos, elogios e imaginações. Pareço dramática, e o sei, mas você, tão íntima de Shakespeare, não há de me julgar. E após essa noite, me perturba abrir os olhos e desconsiderar. Encontrar mentiras e irrealidades no meu sonho? Que tristeza racionalizar.
Devo dizer-te, então, que decidi. Não vou mais me questionar! Há tanto de vida no sonho, que abri mão de acordar.
Vivo de Ismália,
Quanta agonia!
A mente me falha,
Psico-ilogia.
É nesse meu doce padecer que te conto, iremos já já nos encontrar. Se em sonho, ou em vida pós-mortem, que importa? Olhos fechados de qualquer forma, não há mais que teorizar. Não me despido de vida, me despido da dimensão acordada desse mundo. E penso que o sonho vai me bastar.
Carinhosamente,
Ismália de Alphonsus
"E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...
As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar..."
(Ismália - Alphonsus de Guimarães)