CARTA PARA ABEL

"A palavra tem vida", o que significa isso em tempos de apostasia? Que todos falantes da língua portuguesa são capazes de repetir esta sentença da mesma forma que podem repetir "AMO MUITO TUDO ISSO"?

Preservo a unidade considerada divina da natureza da linguagem, algo como um vírus vindo de outro espaço, como quem guarda em relicário seu tesouro. Não me resta muito mais, preciso de muito pouco.

Haverá beleza na dor, na miséria e na solidão? Aqui faço uso desprezível do poder vivo que tem a palavra - 'palavra' no sentido maior que a língua confere e não no sentido de numa leitura bíblica para denunciar a figura do meu irmão Abel.

A sombra do homem que ele foi está sentada do lado direito de um deus pai, eco de um édipo estéril. Entre dar socorro e se omitir, fica no silêncio.

Devo a substituição de nosso pai pela sua figura, cópia entorpecida de um pai, figura que soube apenas comparar nossa masculinidade e tornar-me um homem que entendera que realmente era mais homem por não ser cópia sua.

Desde que lembro, e sei que a memória as vezes nos assombra e outras vezes nos traem, vejo sua imponência na cabeceira da mesa gesticulando seguro e descrevendo suas aventuras extra conjugais. Também a conveniência da assistência comprada por uma dúzia de cervejas. Um anti-Ulisses, a cada sentença proferida dava um soco firme

na mesa para que todos soubessem "que assim foi", "que assim está certo", "e ponto final". Escrevia com o gesto o final na empobrecida narrativa facilmente penetrada.

Por sua causa, e desprezei meu pai por trinta anos julgando ser ele um homem de poucas e pobres palavras, o que na verdade era sua maior riqueza. Também por julgá-lo de parca inteligência, ou dissimulada, mas, e sobretudo, pela identificação forçada que estava estabelecida entre o fato de ser ele homem na inteira acepção da palavra e você uma cópia destorcida feita de uma cópia dos retratos de Francis Bancon. Ao simulacro fui encaminhado pelas circunstância e pela preferência do amor de nossa mãe a respeitar e me sujeitar à sua sombra.

Mas quis Deus que, no espelho, depois dos meus trinta anos e depois de ter amado de verdade um homem, a cada vislumbre da imagem de pai que vejo é a dela e não a sua, Abel.

Somos irmãos porque o sangue o pede. Somos de constelações distantes, a minha se chama Poesia e foi do nosso pai que herdei a possibilidade de desencarnar a palavra.

A misericórdia se dá dentro de nós e nenhuma mão estendida será gesto menor que vaidade. A linguagem nunca dará conta de preencher todo vazio que a palavra amor esvazia.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 11/10/2012
Reeditado em 09/12/2017
Código do texto: T3927635
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