Estávamos em férias ... continuação 20a. carta "O piloto dormiu..na UTI Aérea"
Enfim, chegou o dia de voltar para casa. Eu estava alegre e ao mesmo tempo ansiosa. Mas, sabia que a alta hospitalar do meu filho era definitiva. O hospital não teria mais como manter o Róger internado. Ele devia sair do ambiente hospitalar o mais rápido possível.
Como não pudemos ficar em SP, chegou a hora de voltar para casa.
Arrumamos nossas coisas, devolvemos o apto para o primo Fernando e fomos esperar o pessoal da UTI aérea no hospital. Recebemos toda papelada do hospital e ficamos prontos.
Despedimos do pessoal, emocionada fiquei com tanto carinho. Vieram colegas da faculdade, a namorada e a família, e amigos que fizemos em SP. Todos desejavam sucesso nas próximas etapas da reabilitação do Róger. Emocionados. Todos.
Fomos para o aeroporto com a equipe de remoção. Olhei a aeronave, pequena! Mal coube o Róger. Ficou com os pés encostados na parede e com a cabeça justa entre os equipamentos. Imaginem o desconforto dele. Sentei-me ao lado do piloto e acenamos para os amigos que nos acompanharam.
Meu marido ficou para voltar de carro. Ele iria para Araraquara, interior de SP, para entregar o quarto que nosso filho tinha em uma república estudantil. Tarefa difícil. Último ano de faculdade. Recolher suas coisas. Separar o que iria trazer. Vender os móveis do quarto. Enfim, encerrar essa etapa.
Dentro da UTI aérea, meu coração ia apertado. Seriam cinco horas de vôo. Acompanhando meu filho iam duas pessoas, um enfermeiro e um técnico de enfermagem. Estava rezando Ave-Maria, olhando as nuvens e sempre tentando olhar para trás, mas não conseguia ver meu filho.
Olhei os dois e estavam cochilando. C-o-c-h-i-l-h-a-n-d-o-o-o-!!!
Perguntei para eles se estava tudo bem! E falei que estava assustada por vê-los dormir. Disseram-me: “não se preocupe, está tudo bem”. Pedi para eles ficaram de olho no meu filho.
Nem sei quanto tempo tinha se passado, mas ouvi os dois pedirem para o piloto abaixar! Meu coração foi a mil. O que estava acontecendo???
Eles só falaram que estava tudo bem! Mas precisava abaixar a altitude por causa da pressão. O Róger estava mal, tinha vomitado, e eles precisavam fazer procedimentos para que ele não broncoaspirasse o líquido.
Broncoaspiração é um perigo para os pulmões. Significa mais ou menos assim: que o pulmão aspira líquido e geralmente aparece a pneumonia e ouras complicações.
Foram instantes, minutos ... difíceis.
Logo eles pousaram numa pista para pequenos aviões no interior de SP. Respirei fundo e desci do avião. Olhei em volta, não havia pessoas, nem aviões. Que lugar era aquele?
Dei a volta e fui olhar meu filho, eles estavam fazendo procedimentos. Novamente clamei por socorro. Meu Deus!!! Nossa Senhora!! Cubra-nos com seu manto. Aguardei ansiosa. E eles falaram que estava tudo bem.
Conversei com meu filho, queria que ele ouvisse a minha voz.
Os enfermeiros me falaram que o hospital não tinha seguido o protocolo solicitado para o transporte aéreo pois meu filho estava sem acesso venoso e eles não podiam fazer nenhum medicamento no ar. Por isso tiveram que pousar.
Como é que é? Expliquem novamente que eu não entendi. “Isso quer dizer que vocês voaram com meu filho sem antes conferir se o protocolo de vocês estava feito?”
Sim, disseram eles. Minha política foi sempre partir do pressuposto que as pessoas queriam fazer seu serviço direito e que sabiam fazer. Um transporte de UTI aérea não é um transporte de uma carga. É uma vida humana. Foi um ato de irresponsabilidade da empresa e desses profissionais. Meu Deus!
Precisava pensar e decidir o que fazer. Eu estava no meio do nada, em um lugar que nem sabia o nome, tentando voltar para casa.
Voltei-me e lhes disse: “só levantaremos vôo e vocês me garantirem que meu filho não correrá perigo de vida, se houver qualquer dúvida para vocês, não tentem. Consultem quem vocês precisarem. Só vamos prosseguir com essa avaliação. Ou vamos ficar por aqui mesmo, e remover meu filho para o primeiro hospital da região. Deixei-os conversando e fui procurar água.
Quando cheguei no banheiro desatei num choro. Chorei tudo que estava dentro do meu peito. Não tinha cantina, nenhum lugar para comprar água. Havia alguns funcionários por perto que me mostraram o bebedouro deles.
Recuperada, voltei para o avião e perguntei-lhes a decisão. Afirmaram-me que podíamos continuar, que tinham reprogramado a rota para voar mais baixo.
E assim continuamos. Meu filho espremido na maca da UTI aérea.
Foram horas que não passavam. Eu não conseguia me concentrar nem na paisagem, nem na oração. Começava uma ave-maria, recomeçava, repetia partes. Mãezinha do céu. Eu só precisava da senhora por perto.
Pasmem, olhei para o piloto e ele dormindo! Sim, d-o-r-m-i-n-d-o!!! Toquei gentilmente no seu ombro e falei: “sinto muito rapaz, mas não posso deixá-lo dormir. Tenho uma vida pela frente. Acabei de me salvar de um acidente. E meu filho está vivo! Pretendo chegarmos vivos em casa.”
Ele sorriu e tentava me tranqüilizar. Argumentando que fazia todo dia isso, que o piloto automático estava ligado, que não tinha almoçado.
Disse-lhe novamente, vou ficar de olho em você! Não durma mais. Parece até filme. Inacreditável, mas aconteceu.
E os dois lá trás também a toda hora queriam cochilar. Estavam tão acostumados com esse ritmo que nem mais observavam os riscos tanto do vôo como do paciente que transportavam.
Cuidado com o piloto automático. A gente pode deixá-lo ligado e não mais retomar o controle de sua vida, ou da sua profissão.
As horas estavam intermináveis. Monitorava os sinais vitais do meu filho, que, medicado, dormia.
Quando anunciaram que estávamos nos aproximando de Cuiabá/MT, cenas passavam em minha mente, como seria no hospital? Em casa? Como a família estava?
No aeroporto houve a troca de equipe, a médica da ambulância, estava indignada com a situação do paciente que estava recebendo. Eu a ouvia questionar, lendo o prontuário. Aliviada por estar no chão, preocupada com as próximas horas. Diante da postura da médica, só confirmava o grau de irresponsabilidade daquela equipe e empresa responsável. Mas, vamos adiante.
Rever minha cidade da janela da ambulância foi muito triste. Lágrimas corriam pelo meu rosto, silenciosamente. O motorista olhou-me e me perguntou se eu estava bem.
A jovem médica percebeu e me perguntou como estava. Mal conseguia falar. Estava bem, mas estava de volta bem diferente de quando saí daqui. Tinha se passado cinco meses.
A sirene da ambulância me trazia de volta a realidade. Em frente do hospital uma fila de pessoas nos esperavam, parentes e amigos. Tinham cartazes de boas vindas. Cantaram para nos receber. Alegria e tristeza juntas.
Descemos e fomos para a consulta no pronto atendimento. Demorou, o hospital estava lotado. Os médicos corriam de um lado para o outro. Eu corria atrás deles. O meu filho não estava bem. Após ser examinado foi encaminhado para a UTI.
Deixaram-me entrar na UTI. Conversei com a equipe, repassando-lhes cuidados, falando das manchas vermelhas pelo corpo que mostravam a hora de virar para outro lado, do uso das órteses, da necessidade do colírio.
Havia voltado para casa.