onde não existe o ontem

que é o lugar que os seus dois pés não estão mais ali, o seu corpo não está mais ali. Tem uma memória vaga de alguma coisa que foi e não quis ficar. Alguma coisa que dizia que o desodorante aerosol faz mal pro mundo e te fazia rir. Eu explico lentamente o que é riso e a maioria que está próximo começa se afastar aos pouquinhos. Então você diz que não é justo, que saltar nunca vai ser voar, que sonhar durante a noite nunca vai ser o suficiente. Tudo que um dia foi seu, que você pegou nos braços e sentiu segurança agora é um passado bem distante que olhando daqui é muito, muito pequeno. Você entendia que amar é loucura quando loucura é amar intensamente. Onde é que não existe ontem, onde mais seria além das vezes que você ficava embaixo da pia do banheiro esperando tudo passar. Vai passar, vai passar. Eu falo aqui pra você baixinho que até parece segredo, mas todo mundo sabe disso. Às vezes o coração parece casa velha em hora de chuva, as goteiras aparece e só duas mãos não são o bastante pra fechar todos os buracos no teto. E invade, você sabe disso. Até que some, vai sumindo e está ali. Não existe ontem. Não é porque não deu tempo pra inventar histórias bonitas e fingir que foram de verdade, é que não tem como. É alguma coisa sobre lavar a alma e ter que perdê-la no meio disso. Não sei, não sei. Eu fechava os olhos com força e ficava umas luzes tão lindas, eu achava que era o início das manhãs. Como a gente não vê sempre e está ali todo instante. Mas depois eu descobri que isso tudo é andar numa linha que um lado tem um mundo que ninguém viu só que está nele e do outro lado um mundo que só você vê. São ensaios de ano novo. Parece mesmo que vai mudar, mas você não tem coragem pra pular pra algum dos lados. Porque dizem que dói, que é arriscado. E que no fundo tem bichos estranhos que sabem muito dos seus medos, tem sereias que usam a sua maior fraqueza só de passa-tempo. Porque dizem que pular é tristeza. Então não existe ontem. Percebe? Ontem não é só aquilo que passou, mas aquilo que nunca vai passar. É exatamente ter que se salvar acreditando que não tem salvação pra nada. São uns comos, uns quases, uns durantes que nunca chegam lá. Na maior velocidade que os vidros do carro quebram sei lá porquê, a vista de fora são riscos. As pessoas também podem quebrar assim e eu ainda não sei de um modo pra isso não acontecer. Não existe ontem porque não pode por enquanto. Só não pode.

É exatamente precisar lavar a alma e ter que perder tudo no meio disso.

Beatriz Adrivin
Enviado por Beatriz Adrivin em 17/08/2012
Código do texto: T3835812
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.