Carta para meu pai
 
Terra, 12 de agosto, 2012
 
Meu velho querido,

Ao contrário da Elis, estou dando um “Alô” para uma dimensão muito maior que Marte. Pra dizer-lhe a verdade, pai querido, o alívio que senti quando seu amigo Santo Antonio o chamou para  mudar-se de mala e cuia para este lugar, que imaginamos existir, foi imensa. Sabe por que, Pai? Porque o meu querido velho não estava mais querendo ficar aqui.

Eu me lembro da minha Dindinha, que adorava novelas e não passava um dia sem assisti-las, misturando todos os personagens de todas as histórias. Quando ela sentiu que era hora de ir, simplesmente foi como veio, como o senhor. Enganou todo mundo e foi para o Pai sozinho, abrindo seus braços num abraço de fé, de amor, de honestidade, do que é simples, bonito, grande e bom.

Pai, depois que o senhor nos deixou, as nossas crianças estão crescendo lindas e felizes, com pais muito dedicados, que acompanham os filhos com amor. A família continua crescendo e a semente que o senhor e a mamãe plantaram está se multiplicando. Cada vez que encontro os olhos bonitos das nossas crianças meu coração vai até o seu, com todo carinho que posso lhe oferecer.
Hoje de manhã, quando acordei, eu pensei naquele domingo no hospital, quando eu, num gesto sem pensar, fiz-lhe uma proposta.

- Pai, eu vou cantar pro senhor. Posso? – O senhor fez que sim, num gesto com os olhos, porque já não entendíamos o que dizia. (Bem que sabíamos o que era dito...)

E cantei, com a voz melhor que pude dar-lhe. Canções religiosas antigas, das quais já não sei mais as letras, porque era tão criança quando aprendi. O senhor sorria com os olhos da cor dos meus. E isso era o bastante.

Pai, esta terra está uma bagunça. Não seria possível o senhor entendê-la, porque seu coração era bom demais e não gostava muito de ver algumas coisinhas que estão acontecendo aqui. Os que são bons sofrem muito, não tem nem o que comer. Os que são ricos não sofrem nada – ou fingem que não – e jogam o alimento fora. Filhos e Filhas são jogados nas ruas, a droga tomou conta de todos os lugares. Roubar é mais fácil que trabalhar. É fácil dizer “Perdeu”, tirando o que uma pessoa lutou tanto para adquirir. É um caminho sem volta. Matar animais tornou-se uma forma de mostrar poder e força. Destruir a natureza não dói. Quem sente dor é ela e chora desesperada, sem ter onde se segurar. E morros verdes desmoronam pela falta de cuidado dos homens.

Ah, eu me lembrei de outra coisa. Roubar virou status, condição social. As pessoas passaram a aplaudir, com raras exceções de outras, que gritam e ninguém escuta. Para andar nas ruas, temos que tomar cuidado com tombos, escorregões e nos desviar de buracos e principalmente de gente. Os morros passaram a ter portas, que são guardadas com fuzis e outras armas; quem vai preso é sustentado por quem trabalha. Muitos preferem ir presos porque garantem o sustento, sabia?  Matar virou tão simples como beber água.

Nossa, pai, eu me lembrei de algumas coisas que aconteceram conosco e choro de tanta saudade. Quando fomos comprar pão e eu perguntei:

- Pai, por que o senhor reza tanto?
- Porque eu gosto, filha...
 
E o senhor deve se lembrar aquele dia que a pequena imagem do seu amigo íntimo, Santo Antonio de Pádua, caiu na pia do banheiro. Nunca vi tanto desespero no seu olhar. Quando eu tive a idéia de abrir o ralo, o danadinho boiava feliz, esperando que fosse salvo das águas e voltasse para o seu lenço, muito bem embrulhadinho, como um bebê envolto em mantas.
 
Tem o amor, pai. Ainda tem. Confesso no seu ouvido, estou amando de outra forma agora. Se existem formas de amor, esta veio na medida exata, que é feita de partilha, respeito e vontade de me doar inteira, plena, feliz demais.

Com saudade, peço-lhe a benção. Ouço bem perto : “Bença Pai, Bença Bençoe”

Sua filha Sonia
 
Ilustração : Olívia, sua bisneta.