Menino.
De perto, eu conseguia ver até os pingos do suor do sargento escorrendo pelos poros, de que forma ignoraria seu olhar opaco, sua voz aos berros e sua postura corretíssima agredindo minha existência como minha mãe havia recomendado antes de me beijar a testar e me obrigar a ir? De longe, meus colegas de quarto da noite anterior trocavam sinais de risos, ainda que estivesse todos com as mãos nos bolsos e o silêncio fosse total, eu podia sentir. Eu estava lá com eles observando os escolhidos tirarem as roupas e serem obrigados a molestar os judeus antes de me escolherem também.
Respondi com a língua dormente ao ouvir meu nome falso. Se quando tranquilo em fingir ser deste lado da guerra meu sotaque é horrível, nu no pátio branco de neve com chefes bigodudos sendo minha plateia meu alemão deve ter agredido os ouvidos de todos. Ainda bem que não me ouvi, lembro apenas de abrir a boca e de parar de me esconder com as mãos como mandaram.
Envio esta verdade dentro do envelope pois não há mais espaço para culpas dentro de mim. Deveria estar junto a você, trancado no porão do vizinho esperando algum subordinado sentir nosso cheiro fétido de fé fora da lei. Ainda não entendo seus motivos de me manipular ao lado da minha família e me aprisionar aqui, do lado errado da força. Cada vez que levanto o braço traio a mim mesmo, traio o nosso amor, traio a minha fé.
Querido, por favor, aguente até o fim, não quero lhe encontrar aqui. O pior não é ter que colocar fora a comida que sobra vendo os ossos deles quase rasgando suas peles de tanta fome, ter que ignorar os gritos infantis e apertar o gatilho na nuca das mães ou despir os cadáveres. Querido, nada supera saber que a nossa casa está cercada de guardas com ânsia da tua alma judia, nada fere mais do que o medo do seu descuido.
Você sabe: uso o uniforme e calço o sapato que mandam, canto o hino e faço continência a pátria sempre que pedem, como e cago junto com os outros, dia após dia vivendo e morrendo com os soldados, mas não sou um deles.
Esses dias, escrevi forjando outra letra um pequeno bilhete e sem assinar coloquei no chapéu de um dos chefes. Dizia assim: "Sopro beijos que chegam na outra ponta deste país e, seu guarda, ninguém nunca ouviu seu estalo nos lábios de meu amado. Eles ultrapassam a Cortina de Ferro, invisíveis aos vigias, seu guarda. Eles passeiam pelos fios do bigode mais visto pelo povo, cortam a bandeira e vagam pelas ruas após o toque de recolher. Meus beijos, seu guarda, ninguém recolhe."
PS: Ainda não aprendi a finalizar cartas.