são as luzes da cidade
Você pode dizer que são as luzes da cidade, eu entendo. E afirmar também que não existem fadas, que o dente-de-leite que você deixou embaixo do travesseiro nunca virou moeda. Eu entendo porque você passa o dedo nos móveis, porque o pó não abandona seu rosto emoldurado de cachos finos. Você pode falar bem baixinho, eu vou te escutar; pode também dançar sem música olhando os quadros que a sua tia pintou - lembrando dos dias infertéis de junho que a solidão batia o tempo inteiro na porta. Toc. Toc. Replicar as minhas palavras de injúria com o toque da sua mão gelada, eu entenderia tudo sem ao menos você abrir a boca. Gritar que o controle remoto não funciona, reclamar das correrias das manhãs e da calmaria do mar. Eu te daria vários adjetivos, várias palavras moídas, vários silêncios arrancados à força dos meus olhos. Seu tom de voz sempre foi motivo de chuva. Os sapatos molhados faziam a madeira roncar de um jeito engraçado e nós riríamos rente à lareira por causa do seu mau humor previsível. Fechar as cortinas com medo do que pode ter fora, esticar o forro da cama pra não ver o que há embaixo. Se esconder no armário. Eu entenderia cada movimento seu como se fosse tudo feito pra chegar em um destino. Perto da imensidão. Do calor da fuga. Da idéia inútil de eternidade. Você pode dizer que são as luzes da cidade, que isso te incomoda demais e faz seu olho arder. Eu entendo. Correr pra longe de tudo e dizer que é o amontoado de corações que te sufoca, que escuta cada sussurro dos empregados. Que o asfalto petrificou seus sentimentos, que as suas asas são dois galhos quebradiços e mofados. Você culparia as luzes da cidade. E a mim. Mas eu te entenderia. Como se você viesse da minha própria carne, eu entenderia. Ainda diria que a razão te pertence, mesmo que fosse minha.
Eu diria que realmente são as luzes da cidade…