MISSIVA DA MINHA LEMBRANÇA

Casa da Beira, 15 de Junho de 1954

Estava sonhando, mamã, pela alta madrugada – sem vontade de dormir – e comecei recordando um dos mais marcantes eventos da minha meninice. Tu, sem que eu forçasse a minha memória, tornaste-te de repente por inteiro a minha materna musa inspiradora.

Em primeiro lugar o que mais me assaltou à mente foi aquela cálida tarde, de um mês de Junho minhoto, na qual tu me havias chamado da minha curta sesta por ti recomendada. Eram quatro horas da tarde. Meteste dois nacos de broa nos largos bolsos do teu avental e disseste para mim, na tua voz inconfundível e maviosa: anda filho comigo, apetece-me comer ao lanche umas cerejas com pão e temo-las já coradinhas no quintal. Anda daí e traz aquela gancha para puxarmos as ramas mais baixas da árvore. Despacha-te!

E lá fomos descendo as escadas de pedra, cada um com seu chapéu de palha na cabeça e sentámo-nos à sombra da enorme cerejeira que era a rainha de todas as árvores do nosso frondoso quintal. Que rica sombra fresca ali se estendia ao longo daquela courela verde atravessada por um veio de água, vindo do tanque de granito, que presidia ao tenro e fértil plantio de verão.

Tu, mamã saudosa, disseste para mim com toda a ternura num olhar de cor esmeraldina: vês ali, daquele lado, tão coradinhas já? Puxa os ramos com jeito para baixo e corta dois cachinhos delas. Já devem estar madurinhas, chegas lá? E eu puxei e cortei. Cada um deles tinha pr´aí uma centena de cerejas, não? E que boas eram! E que saboroso era o pão, não era? Gostas, mamã? E, sentados à carinhosa sombra daquela árvore, quase centenária (quem sabe?), encostados um ao outro, ternamente comemos aquelas cerejas, tão doces, tão saudosas: tu e eu, as cerejas, o pão e a sombra! Tenho na memória uma leve impressão de que exclamaste: tão docinhas, vês? São as primeiras que comemos este ano, Santo António bendito! Olha, daqui por um bocado vais cortar mais umas poucas, que eu levo no avental. As pequenas estão mortas por comer delas e o papá vem à noite, mais tarde, mas também há-de querer prová-las. Que boas são!… E olhaste para mim, osculaste as pontas dos teus dedos da mão e beijaste-me a face, creio que foi a última vez que o fizeste, sabes? Ao dizeres isso para mim reflecte-se-me em minha memória que o disseste com uma espécie de lânguida nostalgia, como que profetizando algum contratempo irreparável…

Era a tarde cálida de Junho, véspera do dia da tua partida para sempre e era aquele pão bento que hoje me está engasgado pela saudade daquelas cerejas tão doces. Foram as primeiras e as últimas. Foi a nossa última ceia, lembras-te, mamã?

Já passaram cinquenta e oito anos. Mais de meio século, estás vendo? Mas olha que eu não admito que te esqueças daqueles nossos lanches que os dois tínhamos frequentemente naquele quintal à beira da saudade plantado. Continua fruindo o descanso que tanto mereceste no devir de uma vida abnegada, laboriosa e profundamente humana. Naquele coração do Minho, mamã, estou convicto que ninguém, no dia de amanhã, te irá esquecer!

Frassino Machado

In CANÇÃO DA TERRA

FRASSINO MACHADO
Enviado por FRASSINO MACHADO em 17/06/2012
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