Meu vocativo: você

* Texto sensível,

para ser lido ao som de

Turning Tables, de Adele.

Acordo cedo, como manda o costume do trabalho, certamente não o das vontades. Levanto devagar, afasto o edredom e me despeço do calor da cama. Vez ou outra, conto mentalmente quantas horas ainda restam, partindo daquele instante em que abro os olhos, para que eu possa novamente estar me deitando. Sinto-me absolutamente normal com isso.

Pés descalços, porque chinelo sempre incomoda, sinto o contraste e o desconforto entre o calor da cama e o chão gelado. Arrasto-me ao banheiro, tiro a roupa e entro no chuveiro ainda por esquentar. Anseio pela água quente, mas irremediavelmente sinto algumas gotas geladas pingando atrás dos calcanhares. Quase consigo pensar num poema pra isso, mas ainda estou pouco desperto e um tanto cansado pra lembrar de ser criativo logo cedo.

Desligo o chuveiro e corro pro abraço das toalhas, numa sincera tentativa de recuperar o calor que eu deixei na cama e que, eu sei, vai me esperar ao final do dia. Estou limpo, leve, enxaguado, clean até demais. Quando ninguém está por perto – e eu sempre dou uma boa olhada – fico cheirando os meus braços delicadamente, pra ter certeza de que o sabonete cumpriu o seu trabalho. Sinto-me bastante normal com isso, se é que me entende.

Visto as roupas para um novo dia. Dependendo da ocasião, me controlo um pouco mais e visto uma jaqueta de couro. Se der vontade, um moletom também é o suficiente. Só não me peguem em dias de inverno, que nesses aí eu sou quase um europeu vivendo no interior de São Paulo. Tudo aos pares. Calças, meias, blusas e o que mais servir, tudo dentro de um bom gosto velado, é claro. Não entendo o inconformismo. Sinto-me frequentemente normal com isso, exceto quando o Sol resolve sair no meio da tarde. Péssimo dia para brincar de europeu.

Finalmente, chega o momento: o café. Não me refiro simplesmente à bebida como oxigênio dos trabalhadores, mas a algo um pouco mais difícil de explicar. Algo que o beber não compreende tão bem quanto o sentir. Sento-me à mesa, o café me espera pronto. Outros beberam antes de mim, mas estou certo de que nunca provaram o mesmo café que eu, não do meu jeito, não como eu sinto, não, não. Abro a garrafa térmica com cuidado, afinal derrubar uma só gota seria um escárnio. Abro bem os olhos e quase sinto a dilatação das minhas pupilas quando aquele calor toma conta do ambiente. Pronto. Eis o momento de absurda contemplação. Abre-se a garrafa e transborda o líquido, o aroma e toda a fumaça contendo e espalhando o mistério da minha vida. Apressado, quase queimo a língua nos primeiros goles, mas insisto e tento me acostumar com a sensação. Adapto-me. Aos poucos, o sabor muda, o calor se dissipa e sobra uma coisa que é meio ''bom dia'', meio escarro na garganta. ''Estou certo, hoje é o dia'', repito toda manhã. É o meu modo metódico, quase religioso, de contemplar e descobrir pequenas epifanias dentro de casa, dentro de uma xícara de café, dentro de mim. Sinto-me estranhamente normal com isso. Será que você ainda lembra?

O dia vai passando e o efeito do café também. Eu esqueço dos meus compromissos, de datas, de horários, e me concentro apenas nessa necessidade súbita e previsível de lembrar. Existe muita coisa dentro de mim, sabe? Em cada palavra, em cada parte do meu corpo, cada imagem que reconheço ou recordo. Sinto que existe um pouco de mim em cada lugar também, até Roma, Londres e Paris, que eu sequer visitei, têm um pouco de mim. Eu não sei se você está preparada pra isso, mas eu vou ler o jornal de hoje procurando as notícias de ontem. Ainda é cedo, mas estou cansado. Acho que acumulei essas pequenas cartas em mim e agora a exaustão se justifica nos primeiros versos já fatigados. Eu gosto de parágrafos grandes e de entrelinhas cheias de metáfora, disso você sabe. Eu gostaria muito que você soubesse o quanto eu sinto falta do teu CAFunÉ.

Você está pronta para as minhas palavras? Não é um aviso, minha... é... não sei dizer... minha cara, minha querida, meu bem... é difícil escolher o que substitua o teu nome, é estranho. Como é mesmo o nome desse recurso em gramática normativa? Quando falamos com alguém, sabe? É o vocal... vocati... VOCATIVO! É ISSO! Esse será o meu jeitinho especial, tá bem? Meu vocativo... eu não sei se soa bem, mas é repleto de significados, você não acha? Sem pensar muito, consigo encontrar uns três diferentes, mas o problema é que eu penso demais... eu sempre penso demais... em tudo, em todos os detalhes. Talvez eu devesse esquecer as coisas mais rápido, sabia? Ter acessos de amnésia seletiva. Eu realmente quero isso. Ficar sem café me faz querer coisas que eu nunca imaginei que sentiria falta. E olha, que coisa, sinto-me sinceramente normal com isso. Somos capazes de coisas inacreditáveis quando sentimos algo grande dentro de nós. Se o nome disso é saudade, pode apostar que o desejo aumenta a passos ainda maiores. Vou te contar um segredo, meu vocativo. Um segredo que nem é mais tão segredo assim. Porque segredo de verdade só guarda o mistério quando existe interesse de quem escuta. Se acaba o interesse, acaba o segredo. O que resta vira história, vira memória, vira cinzas e pó. Ouça-me bem, meu vocativo.

Era o começo. Você me olhava com aquele sorriso admirado, com ar de absoluta curiosidade sobre o que eu seria capaz. Eu te olhava de lado, meio de cima, sem jeito e sem sorrir. Era de longe, mais longe do que agora, mas eu te olhava. Profundamente.

Uma semana enchendo o pote de ouro. Guardei todas as pedras preciosas que pude e fui apresentando uma a uma, com calma, com paciência, pra te encantar, admito.

Primeiro, a habilidade de contar histórias. Estava estampado nos seus olhos o gosto pela literatura. E não me refiro aos Lusíadas ou ao Crime do Padre Amaro, estou falando da literatura vivida, das histórias do cotidiano, do poder de prender a atenção de uma plateia. Pelo menos isso um professor tem que saber, né? Você não sabia, mas desde o primeiro instante, desde a primeira conversa, desde o primeiro suspiro (aiai), eu senti... eu senti que você era a minha plateia. Um único lugar, não era preciso mais do que isso.

Segundo, o cinismo em contar piadas sem graça e bancar o teimoso diante da situação. Houve boatos de que a poliomielite passou por Campinas várias vezes, mas eu duvido! Nessas horas, sempre ousei um pouco, tentando ser engraçado e ao mesmo tempo bancar o nerd. Um pouco suicida essa tentativa, mas eu já estava acostumado com esse tipo de experiência, se é que você me entende. Nada nesse mundo pode comprar a sua cara de indignação. Nada.

Terceiro, os meus textos. Eu nunca quis usá-los como uma arma, uma flecha de cupido. Não. Embora eu saiba, por claramente observar a reação de quem me lê, o poder de algumas palavras, não imaginava que as minhas memórias pudessem te trazer pra tão perto de mim. Essas mesmas palavras, ditas em voz mansa, mas não menos dolorida, te levaram pra longe. Eu ainda sonho com os seus olhos. Toda noite.

Você me disse, depois de ler um dos meus textos dedicado a um amor antigo, que não conseguia imaginar como é possível alguém mexer tanto com outra pessoa, a ponto de destruí-la completamente. Meu doce vocativo, uma vez permitido o amor, esteja disposta a brincar de roleta-russa: ora deleite, ora dilacerado. Devo ter escolhido o caminho errado por vezes, mas todos esses erros me fizeram chegar, errando, até o seu porto. Meu pequeno vocativo, não me olhe assim com desdém, eu sei que alguma peça do quebra-cabeças ainda não encaixa, eu sei que o bolo de cenoura queimou no fundo e que a cobertura de chocolate não esconde o gosto amargo. Eu sei que você nem se lembra mais das figuras de linguagem ou das aulas de protozoários. Sei que você ainda tem aversão a cócegas, e talvez um pouco mais de mim. Sei que o interfone toca sozinho e que as minhas chaves já não abrem as suas portas. Sei que a distância entre 1 e 2 parece infinita, sei que os meus problemas já não te interessam. Sei que você está sorrindo aí do outro lado e que você odeia que eu odeie champignon. Eu sei que as jujubas do seu tênis colorido já estão cheias de barro e que a poeira do tempo deixou as suas marcas. Sei que você não suporta mais improviso e que não pode nem ouvir falar em Olodum. Sei que as borboletas voaram pra longe, e que as formigas estão se protegendo, sozinhas, da estiagem. Sei que lenços no pescoço e barba por fazer ainda provocam alguma reação no seu corpo. Sei que vermelho é amor e que o seu copo de água está sempre meio cheio. Na verdade, eu nunca entendi por que você enchia tanto o copo de água... Eu sei que ''Ph'' não tem mais o som de ''f'' e que Raquel nunca mais será Bruna. Sei que não adianta a aranha ter oito pernas se quatro estão no abdome. Sei que o seu quarto não tem mais as paredes cheias de declarações e que a minha foto nunca esteve sobre a sua escrivaninha. Sei que a marca da aliança na parede guarda mais raiva do que carinho. Sei que o beijo melhorou da segunda vez. Eu sei tantas coisas inúteis, sei tantos detalhes, tantas mentiras sinceras, que. É isso. Como Caio F. disse um dia, tudo não passa de um que. Assim, com ponto final em seguida, brigando com essa abrupta quebra de expectativa. Eu sei de um milhão de surpresas, um milhão de presentes, um milhão de lugares que gostaria de visitar com você. Eu sei. E aceito que não.

Você não faz ideia de como as coisas têm sido efêmeras ultimamente, de como a vivacidade dos momentos tem se esgotado rápido demais longe de você. Você me devolveu e levou de volta o meu apetite. Que fome!

Sabe, meu vocativo, eu olhava pra você querendo ser o forte, o inteligente, o melhor em tudo, mas esqueci que você se encantou justamente por eu ser um cara quebrado. Eu olho para o jardim de flores amarelas e elas não querem mais ser girassóis. Eu destravo a porta do carro e não sei se estou do lado de dentro ou do lado de fora. Não consigo mais comer cookies, nem os de chocolate. Eu corto a grama e penso nas folhas grudadas na sua blusa e no sorvete lambuzando a sua calça. Eu corto as unhas e queria que elas ficassem imperfeitas. Eu penso em hot roll, mas, que droga, comeria sushi frio e até e o wasabi todo pras coisas não estarem desse jeito torto. Não sei se você percebeu, mas eu menti quando disse que não usava hashi por um trauma de infância... eu não fazia ideia de como comer de palitinho e não queria demonstrar fraqueza no primeiro encontro. Você me perdoa por isso? Eu entendo se não puder.

Eu não sei quando perdi o controle das coisas, talvez eu nunca tenha entendido bem como administrá-las. Da outra vez, as feridas ficaram abertas por muito tempo, o gato foi escaldado até demais. É estranho conviver com a ideia de que eu encontrei e afastei tudo o que eu buscava. Eu me inundo em lembranças boas, cobertas de ironia e segundas intenções. Tento, juro que me esforço pra pensar o contrário, pra ignorar, mas no fundo eu ainda acho que o vaso trincado tem conserto.

Você está em mim o tempo todo. Eu fecho os olhos e revivo momentos. Eu abro os olhos e posso senti-los. Eu disse que ia ficar longe, mas não imaginava que você podia viver tão perto de mim. A distância física não significa nada, eu sempre sinto você ao meu lado. Do lado de dentro. Em mim.

Eu tenho sonhado muito com você, toda noite. Quando acordo, vivo um instante de ilusão, torcendo pra que alguma coisa seja real, algo que vá além do meu inconsciente. No começo, juro que eu preferia continuar dormindo, era o meu momento de fuga, um descanso no pensar, pensar, pensar, pensar em você. Agora, já não sei o que me atormenta mais. Você está em tudo o que faço, em cada palavra, em cada ação, em cada unidade de espaço e tempo. Existe uma coisa muito grande dentro de mim, mas ao contrário do que você possa imaginar, não é ressentimento, não é mágoa, está longe de ser ódio.

As memórias falam alto dentro de mim, eu quase vejo você sendo a minha criança de novo, a minha menina. E quase vejo teu cabelo crescendo, as pontas com mechas californianas, lembrando a minha irmã. Eu quase vejo a fogueira quente na noite fria, a dor de cabeça que melhora com o remédio líquido e não com as drágeas. Eu quase vejo você cantando a nossa música sem chorar. O álbum de retratos mais incrível, o pijama laranja, a aliança no meio do celular. Eu quase vejo. O hippie chic nas tuas unhas, a vontade louca de remover o esmalte e sentir os velhos choques, a surpresa dos teus amigos, a surpresa dos meus. O temaki na minha casa, o shoyu na sua roupa, as pulseiras do Senhor do Bonfim. A banheira cheia de espuma, a casa vazia, o banho à dois. Eu quase vejo, eu quase sinto. O teu carinho nos dias difíceis, as palavras doces e otimistas quando tudo dava errado. O hambúrguer que eu não comi, o milkshake que você tomou, o suco de morango. Eu quase vejo o cupcake granulado, o beijo na testa, as cicatrizes no braço, o cheiro de beijo no ar. O abraço por trás, as mãos entrelaçadas, os óculos embaçados, a conversa ao pé d'ouvido. Eu quase vejo. Você entrando no ônibus, você esperando na farmácia. As mensagens infinitas no celular, as ligações intermináveis no telefone. O teu orgulho em ver o meu sucesso, o teu sorriso sincero ao ser surpreendida. Os depoimentos, a Madona, o pirata e o filme assistido à distância. O teu medo nas cenas de terror, as tuas lágrimas nas cenas de romance. O teu coração disparado em contato com o meu peito. O teu ombro amparando o meu cansaço. A tua voz cantando uma música sem sentido pra embalar o meu sono. Os remédios pra curar o corpo e a alma. As séries, os personagens, a maquiagem escondendo o rosto. Eu quase vejo você pedindo pra eu não ser o palhaço de novo. A espera depois da excursão, o braço envolvendo o teu corpo no cinema, a carta gigante, o bilhete no jaleco, a escapada no meio do congresso. O pedido de namoro mais estranho do mundo, os presentes deixados no vizinho, o primeiro pedaço de bolo, o óleo de massagem, o perfume, a Ferrari, A ferrari, a Klink Klemm. Eu quase vejo. A neta chamada menina. As pombas obesas. A pedra de Jade. O pão de queijo com quitina. A canaleta levantada, a invasão de residência, a cara feia do teu pai. Eu quase vejo. A vontade louca de dizer as três palavras. O conforto do teu colo. O sabor dos teus lábios. O medo de ficar sozinho no escuro. O Cubo. A massagem. A balada à dois. A festa em que você brilhava. A vontade descontrolada de me aproximar de você. A tua pele suave, a delicadeza do toque, as unhas, os dentes, os músculos, o casal de joaninhas, hot roll com schweppes, bolo de chocolate com morango. Eu quase vejo. E engasgo diante dessas lembranças, perco a voz, os sentidos e o chão. Olho em volta, ninguém está olhando, mas me sinto acuado mesmo assim. De longe, tento imaginar um abraço bem apertado. E eu não quero que essa cena jamais saia de dentro de mim. Será que foi apenas uma coincidência o nosso primeiro filme juntos ter sido ''O Besouro Verde''? Eu acho que não, meu querido vocativo.

Estou voltando pra casa. Sei que não vou encontrar os teus olhos de esperança e o mundo cor-de-rosa que um dia tive nas mãos. Sei que os sonhos vão continuar te aproximando de mim e que nenhum post it vai me fazer sorrir no meio dos dias de trabalho. Sei que o meu cachecol, hoje, só esquenta o meu pescoço e não mexe mais com você. Sei que a minha adaptação de Marina, do Vinícius, sequer mexeu com o seu humor. Sei que meus desenhos viraram folha de rascunho e que as minhas cartas ocupam espaço no seu armário e nada mais. Sei que os rios continuam correndo e que a água só está um pouco mais turva do que o normal, mas sempre conforta pensar que a primavera vem logo depois do inverno. Sei que o meu jogo de palavras te cansou e hoje não sou nem reserva no seu time. Sei que o sorvete, de ninho trufado ou chocolate com menta, derreteu bem diante dos meus olhos, e eu nada pude fazer. Sei que você não gosta de café, mas tente entender, dessa vez, o sentido que eu quis dar às coisas. Um pouco de visão de mundo, meu vocativo!

Eu me sento pra descansar um pouco. Coloco a xícara de café sobre a mesa de centro, sem dizer uma única palavra. Coço a cabeça. Bocejo, mas não é sono. Sinto uma profunda inquietação, estou exausto. Meus olhos começam a se fechar involuntariamente, sinto que estou me despedindo. Sei que você não vai ler nada disso, sei que essas palavras não vão chegar até você, mas, se eu pudesse, te diria apenas uma palavra:

volta.

Você nem sabe, mas mexeu comigo muito mais do que qualquer outra pessoa...

Vai-se o tempo, a infância, o medo. Vão-se as angústias, as cicatrizes, os pesadelos e as borboletas no estômago. Vão-se as minhas esperanças. Hoje o dia não amanheceu direito, acho que não saí da cama. Fica o silêncio, o sossego, o estrago irreparável. Fica sempre dentro de mim. Fica perto. Fica bem. Eu te amo.

Com carinho,

do incansável e sempre seu,

J. C. S..