Os dias passados
6 de Novembro de 2003
(...) Olha meu amorzinho querido (pessoa imaginária),
estou numa aula da noite. Tenho apenas um aluno na sala. É um aluno silencioso e transparente. Pobre rapaz. Não tem nada de atraente ou particularmente cativante. Parece ser amável e esse aspecto é positivo, porém não tem mais nada. Não é lindo, é demasiado baixo e veste-se com discrição. O cabelo é ondulado de uma maneira que já não se usa. É um rapaz arcaico. Não tem amigos, está sempre sozinho. Tem alguns hábitos desagradáveis: coçar a cabeça, as orelhas e o nariz. Chega a fazer feridas de tanto se coçar. Penso que sejam tiques para vencer a timidez. As mãozinhas são repelentes. Pouco aprende e digo pouco, porque gosto dele e custa-me dizer que não aprende nada. Há pessoas assim, transparentes!
Olha amorzinho querido, eu não me coço de forma desagradável e em público. Tomo banho, tenho as mãos sempre o mais limpas que me é possível e creio que as pessoas me vêem, isto é, dão por mim. Costumo contar umas histórias com graça, as pessoas riem e têm algum prazer na minha companhia. Mas, em boa verdade, eu também sou transparente. Não conto para nada nem para ninguém. Há dias em que isto, a transparência, não me incomoda. Convivo bem com o vazio, demasiado bem até, mas há dias, hoje, por exemplo, em que gostaria de adquirir substância, solidez e fazer o que fazem as pessoas que têm o dom da solidez. Queria abraçar, beijar, falar ao ouvido de alguém... Já tocou há dois minutos. O meu aluno transparente e arcaico despediu-se de mim:
- Boa noite, bom fim-de-semana.
- Boa noite, Herculano. Bom fim-de-semana.
Eu também me vou embora e beijo-te e abraço-te como se fosse sólida.