Carta para minha mãe





 
            Querida mãe, penso que é a primeira vez que escrevo para você.  E já me recordo o que você sempre dizia:  - “Se me quiserem fazer algum carinho, falar bem de mim, façam enquanto estou viva, porque depois de morta não tem o mesmo valor, não vou ver a fala de vocês me elogiando”.
            Pois é, mamãe, ainda bem que você está bem viva, com saúde e com aquela personalidade forte que sempre me espantou, apesar de tudo que já ocorreu na sua vida.
            Assim, vou poder relembrar fatos que provavelmente você já esqueceu, mas que meus olhos de menino, de rapaz e de  homem presenciaram.
            Imagino o susto, as dúvidas, o seu sofrimento, mamãe, ao ser mãe tão jovem, numa época de tanta repressão , preconceito, principalmente na área sexual. Numa época em que a mulher não tinha nenhum direito e que o chefe da casa só poderia ser o pai, de acordo com a lei civil.
            A ignorância, principalmente, em lugares pequenos, como era Manaus no seu tempo, você enfrentando praticamente sozinha a incumbência de criar um filho. Certo, papai era o provedor da casa, mas sempre percebi que a forte da casa era você, mamãe.
            Todas as grandes decisões foram  tomadas por você, com uma coragem incrível e sem estudos. Recordo-me que você sempre dizia: “ se tenho que resolver algum problema e preciso conversar com alguma autoridade, procuro logo alguém que esteja acima dessa autoridade, não vou no padre ou no bispo, vou logo no Papa”.
            E era verdade, você ia logo no Papa, entrava na sala da autoridade, sem medo, e exigia uma decisão imediata. E você, mamãe, chegava sempre com a solução para nós. Papai era um intelectual, mas quem resolvia tudo era você. Penso que isso, tantos anos decidindo tudo, acabaram um pouco com seus nervos e seu lado emocional ficou um pouco prejudicado.
            Mas nós, papai, eu e minha irmã sempre fomos salvos por você.
            Lembro, mamãe, que íamos à praia do Flamengo e você decidida, como boa amazonense, mergulhava no mar e disputava corrida de natação com o guarda-vidas da praia, o Peixe, lembra disso?   Eu, pequeno ainda, ficava admirando vendo você sumir lá longe no mar.
            Como é bom recordar. Teve um domingo que voltamos da praia já tarde, por volta das quatorze horas. Caía um temporal de verão terrível, naquela momento  Era o último dia em que passava o filme “Melodia Imortal” e eu já começava a chorar porque não haveria tempo para ver o filme, pois tínhamos que tomar banho e ainda almoçar. Mas sua decisão rápida acabou com o problema, você pegou  sua capa de chuva e botou por cima do seu maiô e fez o mesmo comigo. E lá fomos nós com capas de chuva para o cinema São Luis ver o filme. Você de maiô e eu de calção de banho, com os corpos salgados do mar.
            Lembra-se do seminário,  em Caxambu?  Você salvou o meu braço direito, que teria perdido, não fosse o seu desvelo de mãe-leoa.  
            Vou relembrar, minha mãe:  jogando futebol, levei um tranco de um adversário e na queda no chão de terra feri meu braço. Não limpei a ferida, o que provocou uma grande infecção.  Havia proibição das mães visitarem os filhos no seminário. A única mãe, para desespero do Pe. Sisnando, que aparecia,  era você. E todo mês. Eu até ficava com vergonha.   Pois num desses meses, você viu meu  braço com um grande caroço roxo. Ao pegar o caroço, ele explodiu em seu rosto, jorrando grande quantidade de pus. Levado ao médico, ficamos sabendo que mais um tempinho sem cuidar daquele braço eu teria que amputá-lo. Não fosse suas idas a Caxambu... Não queria dizer, mas você sempre foi intuitiva. Você, lavando roupa no tanque de casa, teve a visão de me ver caindo ao chão e pedindo socorro. Nesse mesmo dia, você pegou um avião e foi até Caxambu!  
E a Naná, minha irmã, lembro-me como se fosse hoje. De noite, você com minha irmã, de um ou dois anos na cama. Ela estava com uma gripe muito forte, bem encatarrada, se não estou enganado, estava com coqueluche.  De repente, você levanta da cama, com a Naná no colo,  que sufocava e começava a ficar  roxa. Você abriu a porta do apartamento e foi gritando, pelo corredor,  feito louca,  pelo porteiro do edifício, o seu Ramiro. Chamando o elevador,   você gritava: - “minha filha está morrendo sufocada”. E  eu ao seu lado sem saber   o que fazer.  Felizmente, com a sua corrida e os solavancos, minha irmã soltou o catarro e voltou a respirar.
            Quero dizer, mamãe, que era sempre você que tinha as iniciativas, e como foram importantes pra nossa família.
            Lembra que era você quem pintava sozinha as paredes do apartamento? E os banquinhos toscos  de madeira , que serviam pra gente sentar, era você quem pintava, cada ano de uma cor. Um ano era de branco, no outro de amarelo. Tudo isso pra economizar o dinheiro do papai, ainda em começo de carreira e o dinheiro era bem curto.
            A sua honestidade com dinheiro eu tenho que ressaltar sempre! Nunca vi igual.     Só uma vez você foi meio irresponsável com dinheiro. Mas vou explicar.  No Rio, o refrigerante Guará lançou um concurso para se ganhar um apartamento. Na tampinha do refrigerante vinham as letras g, u, a r e a. Eram quatro séries com as letras formando a palavra guará. Cada série de uma cor. E ficou faltando a letra g, de  cor rosa. Conseguindo essa letra, o apartamento seria nosso. Morávamos em apartamento alugado e essa era nossa maior ambição: apartamento próprio. Aluguel era muito caro.
            E aí, mamãe, você  nervosa pra ganhar o apartamento, começou a  comprar todas as caixas de guará,  lá na Padaria da Belmira. E eu ajudando a abrir todas as garrafas, jogando o líquido fora no tanque, só pra achar a legra “g”, até que um dia papai descobriu. Foi aquela bronca e nunca mais você foi irresponsável com o dinheiro. Éramos pobres, eu entendi você. Depois estourou o escândalo do refrigerante guará, nunca saiu a letra que nos daria o apartamento.
            Levei muitas surras suas, pois na sua ideia não era possível tolerar mal feitos. E o corretivo era a surra de cinturão.  Você deve lembrar bem: eu era levado mesmo, estava sempre na rua com a molecada, aprendendo e aperfeiçoando meus mal feitos.
            Mas se um filho seu fosse vítima de grosseria ou injustiça, logo você empunha sua espada de justiceira e ia tomar satisfações com quem quer que fosse. Podia ser até o Rei, não importava. Recordo-me de você com o Diretor do Colégio Zaccaria exigindo punição para o Professor de Desenho, que na aula, com extremo nervosismo, quebrou minha régua.
            Sabe, mãe, você nos acostumou mal, inclusive o papai. Você sempre resolveu tudo.
            Recordo-me, essa é incrível, que fui ao Maracanã ver Flamengo x Vasco, estava com meus 14 anos. Você em casa, ouve o locutor dizer que estava acontecendo uma briga generalizada no Maracanã, quase no fim do jogo. Pois não é que você vai de táxi para o Maracanã, pensando em salvar seu filho e consegue achá-lo? Chegando ao Maracanã, você diz ao motorista: - “pare naquele portão! “  E seu filho, um minuto depois sai daquele portão, entre dezenas de portões do estádio.
            Mamãe, não resisto, para terminar esta carta que já vai se alongando, teria tanto mais a dizer, não resisto, repito, a contar e relembrar duas passagens do papai reclamando comigo, eu já homem feito e casado. Um dia, chego na sua casa e papai, apreensivo, me confidencia: - “meu filho, está ficando difícil, sua mãe só me dá o dinheiro contado do ônibus de ida e volta, quando vou trabalhar. Ela esquece que tenho que fazer um lanche à tarde”. Lembra, mãe, que papai entregava todo o dinheiro dele, pra você administrar, tal a confiança que ele tinha em você? Falei com você sobre esse dinheiro contado e você me disse que não dava mais,  pra ele não se desviar na rua...
            Você trabalhou tanto em casa, arrumava a casa, lavava as roupas naqueles velhos tanques, encerava o assoalho e fazia a comida mais gostosa do mundo. Fez um curso de culinária na Light. Aprendeu também a costurar e você mesma fazia seus próprios   vestidos.   Mas quando você chegou aos 60 anos, certo dia, de repente, você parou de fazer esses trabalhos domésticos. Papai também reclamou comigo sobre isso. Encontro-me com papai na sala de casa, ele cara amarrada, me confidencia: - “meu filho, não sei o que é que deu com sua mãe, não quer fazer mais nada em casa, parou de cozinhar e arrumar a casa”.  Pudera, não é mãe, quarenta anos fazendo a mesma coisa, era pra parar, mesmo!   
            Agora, com mais de 80 anos, ainda vejo aquela sua  velha coragem e a força de espírito bem presentes. Claro, a vitalidade está diminuída, não é pra menos. Mas aposto que se você tivesse que tomar satisfações em favor de um filho seu, você tomaria iniciativa e iria ao  fim do mundo, mesmo que para isso precisasse morrer.
            Mãe, obrigado pelo exemplo de honestidade, entrega total para sua família, e, principalmente exemplo de coragem e persistência na sua vida. Talvez, não tenha conseguido absorver toda a sua coragem e uma fé inquebrantável no seu poder de realizar as coisas. E você realizou tudo que sonhou.   Está bem, você não tem culpa do seu filho não ter a sua coragem de vida,  mas ficou o seu exemplo de  mãe-guerreira e, mais que tudo isso, mãe-leoa, com um instinto maternal invejável e que vai rareando nos dias de hoje. 
           

                    Nota:  A foto foi tirada em novembro do ano passado (2011). Minha mãe, minha irmã Naná e eu.  Desculpem-me os amigos, nesta carta desprezei a parte literária, o bom português, pois fui levado somente pela emoção. Gdantas