Cartas de Amor de Kahlil Gibran

                          "Você me dá tanta alegria que ela chega a doer, e você me causa tanta dor que eu chego a sorrir."

 
Eu fui tocado pela sua presença desde a primeira vez que a vi; foi numa exposição de meus desenhos, no estúdio do Sr. Day. Você estava usando algo de prata em torno do pescoço, e aproximou-se de mim, perguntando: “será que eu posso exibir alguns destes quadros na escola onde leciono? Eu concordei; e na medida em que conversávamos, sentia-me melhor e melhor. Quando fui pela primeira vez até a sua casa, senti que a atmosfera do lugar — os livros, a maneira de arrumar a casa — tinha uma profunda identificação comigo. Gostei da maneira como conversamos, e do jeito suave com que você me fez falar de mim mesmo.
Você fez muitas perguntas, e algumas vezes me senti encabulado; mas, graças ao seu espírito e inteligência, terminei contando tudo que queria saber.
As outras pessoas me acham interessante. Elas gostam de me ver falar, porque eu sou uma pessoa diferente. Para elas não passo de um divertimento, que logo será esquecido quando algo mais curioso aparecer. Você, entretanto, foi capaz de arrancar o que havia de profundo em mim, sentimentos que raramente compartilhei com alguém. Isto foi ótimo — e continua sendo.
Ficamos amigos. E um dia você me perguntou se eu precisava de dinheiro para ir até Paris. Até aquela data, sempre tinha recusado este tipo de ajuda, mas você me disse algo sobre o dinheiro, que eu nunca vou esquecer: ele é impessoal, não pertence a ninguém, apenas passa por nossas mãos. O dinheiro não é uma posse, mas uma responsabilidade, e cabe a nós dar-lhe o destino certo.
Fui a Paris, sempre tendo ao meu lado a sua imagem, sua fé, e sua ternura. Ali, eu reparei que, ao invés de ver apenas a cidade, estava estudando a mim mesmo, e vendo como a nossa relação começava a afetar meu cotidiano. Mesmo com você distante, sua presença me acompanhava por   ruas, praças, e cafés. Quando voltei, tornei a encontrar a mesma doce criatura que conhecera .
Então eu lhe pedi em casamento. A partir deste dia, você começou a ferir-me. 
E continuou me ferindo. Eu sofria, mas cada vez que nos encontrávamos — nesta época, a gente se via duas vezes por semana — você falava: “Kahlil, creio que lhe magoei na quarta-feira passada”
— ou na sexta, ou seja quando tivesse sido. “Perdão”, você dizia. “Não pretendia fazer isto.” Você então se tornava a criatura mais doce do mundo, e eu pensava comigo mesmo: “esta é a Mary que eu amo”. Entretanto, antes mesmo que aquele encontro acabasse algo de brutal tornava a sair de sua boca. Nada do que eu pudesse dizer ou fazer era capaz de impedi-lo; a agressão vinha, e quase me matava.
   Eu voltava para casa, e refletia: ”se eu aceito o sol, o calor, e o arco-íris, preciso aceitar também o o trovão, a tempestade, e o raio.” Eu tentava, mas sentia que coisas
 importantes estavam morrendo dentro de mim. Então, certa noite — quando voltávamos de Gonfarone — você disse que o fato de me ter dado
dinheiro para a viagem criara uma grande distância entre nós. Quando cheguei em casa, decidi conseguir aquele dinheiro de volta. Pedi emprestado, e fui até a sua casa para entregá-lo, mas você
havia viajado para Boston. Ao voltar ao meu quarto, uma linda carta sua me esperava; e esqueci de novo as palavras agressivas.
Outro problema nos aguardava. Quando estava conversando com você no seu apartamento, seu irmão chegou. Notei que não tinha gostado de minha presença, e comecei a sentir-me desconfortável.
 Dois dias depois, você ainda estava triste com aquele encontro, e pressenti que seu irmão me considerava mais um estrangeiro sem escrúpulos, interessado em obter vantagens materiais e sociais neste tipo de relação.
 
Isto quase me destruiu. Mas de novo tornamos a nos encontrar, e seu encanto fez-me de novo acreditar que o desagradável episódio com seu irmão tinha sido apenas um sonho ruim. Entretanto, alguma coisa mudara no meu coração, já que minha alma não podia estar sempre resistindo aos constantes ferimentos. Eu precisava me proteger, e passei a dizer a mim mesmo: “qualquer relação mais íntima com esta mulher é impossível.”
  Claro que esta estratégia não funcionou, nem mesmo quando eu lhe disse o que acontecia comigo. Mas, a partir daquele instante, você nunca mais me feriu.
Tudo que estou contando, é apenas para que saiba como vi os nossos primeiros anos juntos. As coisas mais profundas jamais mudaram; a identificação que tive, o reconhecimento, a paixão do primeiro encontro — tudo isto continua igual, e assim continuará para sempre. Eu a amarei por toda
a eternidade, como já a amava muito antes de vê-la pela primeira vez, e chamo isto de Destino.
Nada pode nos afastar; nem eu, nem você podemos mudar esta relação. Eu quero que você se lembre pelo resto dos seus dias, que você é a pessoa mais importante do meu mundo.  Que, mesmo que você casasse sete vezes, com sete homens diferentes, tudo continuaria igual em meu coração.
E hoje, também entendo que o nosso casamento era impossível. Ele teria destruído a ambos. Nossa vida em comum terminou sendo guiada de uma maneira diferente, e por isso fomos salvos. Você me ajudou a descobrir a mim mesmo, e ao meu trabalho. Eu penso que fiz o mesmo com você, e agradeço aos Céus por estarmos juntos. 
Kahlil Gibran
 
 
 
                 Nota:  Como estarei ocupado no interior do interior do Estado do Rio de Janeiro, retornando no fim da semana que vem, veio-me a ideia de deixar uma carta maravilhosa do grande Kahlil Gibran, que foi apaixonado a vida toda por Mary Haskell. A carta e muitas outras mostram o homem comum que era Kahlil Gibran, apesar da alta estatura de seu incomparável espírito. E como o amor é complicado, mesmo!  Esta carta retirei da Internet, que publicou o livro de cartas do poeta, com prefácio de Paulo Coelho.
                    Abraços aos amigos e amigas e até a volta! Gilberto