CARTAS PARA CLENIR - VI

O PISTOLEIRO

Brasilandia 15/10/2001

Querida esposa.

Segue a continuação da carta anterior.

Acordamos com o canto da passarada, fomos ao rio para a higiene matinal, O caminho abandonado já estava coberto de arbustos, mas a variedade de pássaros, borboletas e frutos silvestres era uma festa para os olhos. A chegada à margem do rio também foi tempestuosa com pequenos animais saltando dentro da água e um estrondo maior quando um bando de capivaras fugiu espavorido à nossa aparição. Foi uma manhã de alegria constatando que mesmo com o descaso das autoridades, os animais conseguem sobreviver à sanha dos caçadores.

Fizemos uma refeição à base de ovos mexidos, queijo e farinha de mandioca e um café forte. Foi preparado pelo senhor Josias, acostumado a este tipo de vida meio nômade e que estou decidido a deixar de participar, pois estou pegando gosto pela aventura e tenho medo de ficar como ele e outros da equipe, que não viram os filhos crescer. Foram pegos pelo feitiço da vida livre, sem preocupação com luxo e dinheiro. É poético viver assim, mas não é justo para quem depende de nossa presença carinhos, conselhos e a segurança de estarem sendo protegidas pelo pai e marido.

Arrumamos as traias dentro da picape e partimos. O caminho percorrido até a saída na estrada principal foi novamente coroada com a visão de animais grandes e pequenos como uma família de tatus, a correrem na frente do veiculo, uma fêmea e três filhotes. Riamos muito, seu Josias ficava sempre apontando a câmera em direção ao cerrado para não perder nenhum lance que fosse interessante. Já na estrada principal rodamos oito quilômetros e encontramos uma nova estrada vicinal, entramos por ela e rodamos quinze quilômetros. Numa baixada a beira do rio avistamos uma carvoaria, vários fornos frios e um recém construído em atividade.

Assim que encostamos o veiculo apareceram quatro garotos e duas garotas o mais velho aparentando oito anos e três a mais novinha. Se não fosse a tristeza de ver crianças trabalhando em vez de estarem na escola ou brincando, seria até cômico vê-los tão sujinhos de carvão. A seguir vieram dois homens e mais mulheres e crianças, nas mesmas condições. Perguntamos se poderíamos acampar e pescar, disseram que sim e as crianças perguntaram se tínhamos balas doces, O senhor Josias lhes deu uma barra de chocolate e os pais educadamente pediram desculpas pelas crianças, dissemos que estava tudo bem, pois gostamos delas.

Procuramos um lugar sob uma árvore frondosa onde o chão já tinha sido usado para assentamento de tendas de acampamento. Fomos para a beira do rio e ficamos jogando os molinetes, mas sempre de olho no que acontecia na carvoaria. Meio dia nós montamos o fogão a gás e fomos preparar o almoço, aipim, carne de sol, arroz, e salada de tomates, seu Josias sabe fazer de uma comida simples, um prato saboroso, acho que vou chegar meio gordo por aí. Terminado o rega bofes, seu Josias foi tirar uma soneca, eu peguei a câmera e voltei ao rio para continuar registrando os acontecimentos da carvoaria.

Dava vontade de ir ajudar as crianças, a mais nova de apenas três anos ia com um cesto bem grande para seu tamanho. Enchia com carvão e o transportava as duras penas retirando o produto de um forno frio e levando para um grande amontoado que ficava à margem da estrada. Quem visse de longe pensaria que ela era uma criança negra, pois estava pretinha, como se alguém a tivesse pintado, eu atinha visto de perto, era lourinha de olhos bem azuis. As quinze e trinta seu Josias se juntou a mim, deixei a câmera com ele e fui tentar pescar um surubim num poço mais profundo um pouco acima, fiquei por lá até quando começou a anoitecer, ouvi vozes alteradas vindo do acampamento e regressei rápido.

Um rapaz aparentando trinta anos pardo, vestido com calças de brim índigo sanforizado e uma camisa quadriculada, Calçado com botas de cano longo. Um cinto largo segurava suas calças e sobreposto sobre ele um cinturão cheio de balas, um revólver grande estava enfiado no coldre do lado direito e o cano alcançava a metade da coxa do sujeito. Havia outro homem mais velho de aparência mais mansa pois não estava com arma de fogo embora na cintura estivesse enfiada uma faca do tipo das que usam os nordestinos e segurava uma foice com a lamina voltada para cima e o cabo apoiado no chão.

O homem armado estava falando com o senhor Josias em tom ríspido: - só vou permitir que fiquem esta noite por que já armaram as barracas, mas amanhã quando o dia amanhecer eu os quero fora desta propriedade. Os meus patrões vão chegar amanhã e eles pescam à noite exatamente onde estão acampados, além disto, eles não permitem estranhos na fazenda. Josias tentou argumentar, mas o homem se irritou mais ainda e quase nos expulsou do lugar a força, concordamos em sair pela manhã e após a saída deles, ficamos discutindo o assunto. Antes deles se retirarem do local ainda os ouvimos chamando a atenção dos trabalhadores em altos brados, numa linguagem suja e com xingamentos por eles terem dito que poderíamos acampar.

Josias ficou um pouco perto da fogueira, peguei o violão e dedilhei acordes daquela música “luar do sertão”, vi os meninos e os pais deles saírem do barracão cercado com esteiras de bambus e ficarem ouvindo. Fiz sinal para se aproximarem, mas acenaram de volta e ficaram lá mesmo, imaginei ser a causa, os ralhos do pistoleiro que certamente não queria intrusos para ver seu trabalho escravo. Continuei e cantei aquela música que fiz para você e que fala dos seus olhos verdes, cantei mais duas canções caboclas e seu Josias pediu licença e foi dormir. Os carvoeiros também entraram para o barracão e eu fiquei ali junto a fogueira que tinha se transformado num braseiro, fui até a caminhonete cortei alguns gomos de lingüiça defumada, pão sovado e retornei para perto do fogo.

O senhor Josias quando sentiu o cheiro da lingüiça assando, se levantou e rindo veio se juntar novamente a mim. Foi também à picape e pegou mais carne, queijo e trouxe a garrafa de aguardente, tomamos uma boa dose e esperamos até o assado ficar no ponto, acho que tomamos muita cachaça e comemos bem. Seu Josias voltou à barraca eu fiquei ali cantarolando baixinho e me acompanhando com acordes acho que já desafinados pela pinga. Comecei a pensar no pistoleiro e na vida que estava levando. Sua imagem veio me fazer companhia, pensei em coisas boas como daquela vez que antes de nos casarmos, demos uma escapada de um dia longe dos seus pais. Sempre vigilantes para não comermos nenhum pedacinho da lua de mel antes do casamento, que ingênuos eram seus pais.

A grota de árvores altas e a cascata de águas cristalinas deslizando em espumas brancas, sobre as pedras negras. Foi um fogo invadindo nossos corpos e o que eram apenas beijos se transformaram em mordidas que não faziam doer, mas como se estivéssemos provando cada lugar do nosso corpo, você me queria e me tomava eu a queria e a fazia minha ou era você que me fazia seu? Não! Eu nunca fui seu dono e é como agora, nos damos um ao outro. Sua boca, suas mãos, minhas mãos minha boca e a sua carne macia me enlouquecendo e um vulcão aceso que deliciosamente me queimava enquanto ouvia seus gemidos. Doces murmúrios de que estava sendo como você havia imaginado e eu respondia que era como eu também sonhara.

Creia, decididamente esta é a ultima vez que fiquei longe de você! Logo que regressar irei até o escritório e pedirei afastamento desta empresa. O dinheiro que pagam é bastante, mas nada vale a saudade que sinto de você, em três dias estarei de volta e lhe contarei o restante da viagem. Vou ficar ansioso para chegar e não sair mais de perto da minha família. Talvez não ganhe o mesmo salário em outro emprego, mas estaremos juntos e é como quero ficar, junto de quem amo. Fique na luz do grande Pai. Beijos com amor.

Miro.

Saudades e sonhos

Valdemiro Mendonça

Muito silêncio no cerrado

O brilho da lua feiticeiro,

Meu coração compassado

De repente explode ligeiro,

Bate forte e desgovernado

Sacudindo o corpo inteiro.

Sonhei com os seus carinhos

Nas caricias do seu pecado,

E o gosto dos seus beijinhos

Que me deixam apaixonado,

É nestes momentos sozinho

Que às vezes tenho chorado.

Um sonho e um sofrimento

Uma saudade machucando,

O acordar em um momento

Sentindo o amor chamando,

Bulindo o cio do pensamento

Para dizer que estou amando.

Fico inerte ouvindo os ruídos

Na noite de luar e esplendor,

Naqueles sertões esquecidos

Onde os dias ardem em calor,

Tão longe dos entes queridos

Com saudades do meu amor.

Trovador das Alterosas
Enviado por Trovador das Alterosas em 18/04/2012
Código do texto: T3619376
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