Carta 001 - A Perfeição

Carta 001

Assunto: A Perfeição

Um amigo de Pelotas. RS me indaga sobre a perfeição do

cristão, preconizada no texto abaixo:

Sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que

está no céu (Mt 5,48).

Meu caro irmão de caminhada,

O ser humano foi criado para a perfeição e para a imortalidade. Esta é uma verdade incontestável e um artigo de fé. Nós nos tornamos mortais, vulneráveis e imperfeitos por causa da queda original, a qual assumimos com nossa liberdade (livre-arbítrio) mal administrada (cf. Rm 6,23). No entanto, o Verbo de Deus se fez carne para livrar a carne de todo o pecado (pela graça) e da morte (pela ressurreição). Será possível ao ser humano atingir essa perfeição?

Vocês ouviram o que foi dito: “Ame o seu próximo, e odeie o seu inimigo”. Eu, porém, lhes digo: amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês. Assim vocês se tornarão filhos do Pai que está no céu, porque ele faz o sol nascer sobre maus e bons, e a chuva cair sobre justos e injustos. Pois, se vocês amam somente aqueles que os amam, que recompensa vocês terão? Os cobradores de impostos não fazem a mesma coisa? E se vocês cumprimentam somente seus irmãos, o que é que vocês fazem de extraordinário? Os pagãos não fazem a mesma coisa? Portanto, sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu (Mt 5, 43-48; cf. Gn 4,7; Lv 19,2.18; Dt 23,4.7; Eclo 4,10).

No evangelho ora em estudo, vemos que Jesus nos convida a sermos perfeitos como o Pai. Vejam que no “eu, porém, digo a vocês...” há uma série de exigências que nos afastam daquele formalismo da lei judaica, para ingressarmos na esfera do cristianismo, onde a justiça, o perdão e o amor se tornam distintivos. Assim devemos amar, pois é desta forma que Deus nos ama...

Não adianta a gente praticar um cristianismo de palavras ou boas intenções. É preciso uma tomada de atitudes. Os critérios revolucionários do evangelho apresentam a motivação para explicarmos (e entendermos) o alcance e a raiz do ser-cristão e de ser perfeito como o Pai é perfeito. Surge aqui a perspectiva de um relacionamento com Deus e com o próximo para além daquilo que o ser humano sabe desenvolver.

A perfeição começa a maturar quando o amor se converte em uma relação aberta, concreta e crescente, sem retrocessos ou interesses. Os conflitos surgem como um teste para o amor e avaliação da caminhada rumo àquela perfeição preconizada por Jesus. O v. 48 é o fecho do conjunto ético (5,17-47) do “sermão da montanha”. Ali o cristão é chamado a exercitar e desenvolver um comportamento de filho e, mais que isto, testemunha da justiça do Pai.

Trata-se de um amor abrangente, do tipo ágape, que não pode ficar restrito ao “grupo”, ao “círculo” mais próximo, ou à pequena comunidade, mas a todos, aos distantes, aos não-simpáticos e aos que não pensam como a gente. Deus ama a todos, bons e maus, justos e injustos. É assim que ele nos ama e este deve ser nosso “distintivo” (cf. Jo 13,35). Esta é a modificação mais radical da Lei de Moisés. Eu creio que nós podemos ser perfeitos! Se Jesus recomendou assim, é porque isto é possível. Ele não engana, não faz jogo de palavras, nem nos apresenta charadas ou armadilhas. Os santos se tornaram santos e perfeitos na caminhada para o Reino porque confiaram integralmente nas promessas de Jesus. Nós todos somos chamados à santidade. Basta querer e – sobretudo – basta crer na Palavra de Deus. Lamentavelmente, muitas pessoas que pregam em favor do perdão e da concórdia, na prática não sabem aplicar estas virtudes às suas vidas.

No evangelho, ora em questão, Jesus, nosso amigo comum equipara a perfeição humana (relativa e circunstancial) à perfeição de Deus (absoluta e eterna). Pela doutrina da transformação do crente à imagem de Cristo, sabemos que a perfeição não somente é possível, mas resultante daquele processo de santidade que vem implícito no projeto de Deus. Qual o objetivo desse projeto? A santidade e, por conseguinte, a perfeição. Essa transformação não é imediata, mas ocorre durante a vida humana e vai desembocar em um ponto futuro, que conhecemos como “salvação”. A perfeição deve incluir os princípios preconizados por Jesus no “Sermão da Montanha”. No Antigo Testamento era recomendado que se imitasse a santidade de Deus (cf. Lv 19,1). No evangelho Jesus retoma o assunto da perfeição e a centraliza na prática do amor.

Neste texto do evangelho de Mateus, ao que tudo indica, Jesus quis indicar a completa perfeição de Deus como alvo a ser alcançado por seus discípulos, a despeito de tantas imperfeições do ser humano. É importante observar que o clímax da experiência humana, na imitação de Deus, é o amor. O homem, criado “a imagem e semelhança de Deus” não tem no aspecto físico o top dessa semelhança, pois Deus não tem face (ninguém viu a Deus). Somos semelhantes a ele pelo amor, por nossa capacidade de amar.

Em um episódio temático do evangelho, um homem, chamado “jovem rico” entusiasmado pela presença de Jesus se dispôs a segui-lo, afirmando que cumpria os mandamentos da lei de Deus desde a tenra idade (cf. Mc 10,17-22). A narrativa diz que, em face dessa disponibilidade do homem, Jesus o amou. Ele não queria apenas ser um cristão, mas desejava chegar à perfeição:

Jesus olhou para ele com amor, e disse: “Falta só uma coisa para você fazer: vá, venda tudo, dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois venha e siga-me”. Quando ouviu isso, o jovem ficou abatido e se afastou cheio de tristeza, porque possuía muitos bens (Mc 10,21s).

Esta história nos revela, e espero que você compreenda, que a perfeição não depende da forma como praticamos a religião, mas da prioridade que damos a Deus e seus projetos. E essa preferência passa pela partilha dos bens e dos sentimentos. Existem três vertentes para o amor: o ágape, o filéo, e o éros. Enquanto os dois últimos apontam para amizade e interesse carnal, respectivamente, o amor-ágape é o caminho mais rápido para se chegar ao coração do Pai. Como Deus é a perfeição mais pura, exercer esse amor total e totalizante é colocar-se a caminho da perfeição requerida aos filhos dele. Desde a Antiguidade sentimos o peso de seu amor de Pai:

Com amor eterno eu te amei... (Jr 31,3).

O amor de Deus não serve apenas para nos causar admiração, mas para edificar nossa vida cristã que só pode prosperar se for vivida na comunidade, afinal, precisamos uns dos outros para crescer espiritualmente. A esse respeito já advertiu Thomas Merton († 1968): “Homem algum é uma ilha...”. A perfeição sinonimiza com a santidade e se radica no amor. Por isso é preciso sempre ir além, ficando um passo a frente:

Portanto, se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois, volte para apresentar a oferta (v. 23).

Para um coração que busca sinceramente a conversão – e eu sei bem que este é o seu caso – nunca há lugar para o ódio ou para a vingança. Deus não odeia nem se vinga. Ele é pleno de gratuidade, perdão e acolhida. Para Jesus, a libertação dos homens é uma obra histórica confiada a eles mesmos. Por isso eles devem fabricar os meios de libertação mais adequados à sua época. Jesus não vai fazer aquilo que nós podemos fazer. A libertação dos vícios e dos pecados, que pode levar à perfeição, deve ser a obra de uma vida, intentada a partir do esforço humano, com a inspiração e ajuda do Deus Uno e Trino. O surpreendente preceito de Jesus, que encima esta reflexão “Sejam perfeitos como o pai celeste é perfeito (5,48)”, ocupa no Novo Testamento o mesmo lugar de destaque do Antigo:

Sejam santos – diz Yahweh – porque eu sou santo (Lv 11,45).

Enquanto no Antigo Testamento se escuta falar mais em santidade, fica implícito que essa virtude divina passa aos tempos do Messias como a possibilidade de se buscar aquela perfeição inerente aos filhos de Deus. Quando o Deus santo escolhe para si um povo, este povo adquire a obrigação de ser santo, isto é, separado dos ambientes profanos de pecado, consagrado para toda a boa obra. Jesus estatuiu algumas “regras de convivência”, ensinando que não basta viver, é preciso con-viver... Só assim se descobre o verdadeiro sentido de uma vida com paz, justiça e harmonia... É difícil para muitos, mas só assim é possível nos integrarmos no espírito das bem-aventuranças.

Para a santidade duas integridades são requeridas: a física e a moral. Por integridade física vemos as atitudes humanas de bondade e solidariedade. Já a integridade moral se obtém através de um coração firme, fiel e sincero (cf. 1Rs 8,61; Dt 6,5; 10,12), e que esses serviços abrangem a observância dos mandamentos e a luta contra o mal:

Farás desaparecer o mal do teu meio (Dt 17,7.12).

Se quisermos seguir os passos de Jesus começamos por aprender a amar e perdoar, vivendo a fraternidade e o amor universal. Precisamos nos revestir da misericórdia de Deus para termos força para lutar contra todo tipo de vingança e violência. A perfeição é obra da perseverança. Ela jamais se considera satisfeita com o resultado obtido. É precisar ir além... A idéia de progresso é conexa com a de perfeição. O discípulo de Cristo tem sempre que progredir, que “crescer no conhecimento e no amor” (cf. Fl 1,9). O discípulo que deseja a perfeição não cansa de se preparar para a iminente vinda do Senhor, esperando ser encontrado irrepreensível “naquele dia” (cf. 1Ts 3,12s). Ele toma a peito responder ao desejo de Cristo que é construir a sua Igreja-comunidade toda resplandecente (cf. Ef 5,27).

Sejam perfeitos como o pai celeste é perfeito (5,48).

Os discípulos de Jesus são chamados a dar testemunho em um mundo egoísta marcado pelo ódio e pela indiferença, que valoriza mais o ter e o prazer que o ser. A presença dos cristãos deve levar o mundo a crer no amor de Deus que não faz distinção entre as pessoas boas ou más, pois ele se preocupa com todos e não quer que ninguém se perca, mas que se converta e que viva para a vida eterna. É para essa vida que Deus capacita seus perfeitos. Não basta admirar Jesus e seus feitos espetaculares. É preciso imitá-lo; é preciso segui-lo.

Seguir e imitar a Jesus é incorporar ou assumir a sua vida de auto-renúncia, de aceitação dos sofrimentos que não podemos alterar, e de ajuda aos que sofrem. Quem critica aquele que defende os pobres, os pequenos, fracos, oprimidos e excluídos, é o mesmo que assumir o partido dos ricos, opressores e poderosos. É o mesmo que se posicionar contra o plano de Jesus Cristo, o Filho de Deus.

Com este sinal reconhecemos que estamos em Deus: se com ele formos perfeitos (1Jo 4,17).

João quer dizer aqui: perfeitos no amor. Qual é a perfeição do amor? Amar os nossos inimigos e amá-los a tal ponto que se tornem nossos irmãos. Com efeito, o nosso amor não deve ser segundo a carne. Por conseguinte, ama os teus inimigos desejando que se tornem teus irmãos; ama os teus inimigos de modo que sejam chamados a entrar em comunhão contigo.

Na acolhida do Pai não existe distinção de pessoas; ele faz nascer o sol sobre maus e bons, e cair a chuva sobre justos e injustos! (cf. Mt 5, 43-48). Um horizonte que Jesus indica aos que o seguem como saída de si mesmos para entrar na lógica do coração do Pai. Cada um, segundo a graça do Espírito, encontrará sua modalidade e sua medida para liberar estas potencialidades divinas que guarda no coração. São potencialidades do Espírito mais do que um acervo de preceitos jurídicos e, por isso mesmo desafiantes para cada um de nós.

O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor te mostre seu rosto brilhante e tenha piedade de ti! O Senhor te mostre seu rosto e te conceda a paz! (Bênção franciscana inspirada em Nm 6,24-26).

Fico sempre ao seu dispor,

Deus esteja contigo!