Carta a mim mesmo OU Você está bem, querido?
Você está bem? Está passando bem? Está sentindo alguma coisa?
Sim, eu estou bem. Muito bem.
Não, eu não poderia contar-lhe a verdade. Não naquele instante, naquela situação. Era preferível deixá-la pensar que estava tudo bem, tudo certo, não havia nada de errado.
A informação tinha sido muito precisa, muito incisiva, e antes mesmo de ter sido dado a mim o devido conhecimento e as consequentes orientações sobre os procedimentos a serem estritamente observados, várias pessoas realizaram uma minuciosa verificação de todos os exames, laudos, pareceres e literatura sobre aquele tipo bastante raro de problema.
Seis meses. Tão somente seis meses. Era este o tempo que restava.
Nada mais poderia ser feito para acrescentar sequer um minuto em tal prazo.
Mas como ser tão preciso sobre isto? Como sabem tais pessoas sobre o tempo, sobre esta particularidade temporal? Exatos seis meses! Por que não cento e oitenta e seis dias, vinte horas e quarenta e quatro minutos e mais quinze segundos? Ou talvez até mesmo menos que isso, como cento e cinquenta e três dias, dezenove horas, trinta e três minutos e cinquenta e cinco segundos?
Eles querem ser muito técnicos, científicos, muito corretos e concretos. Muito precisos. Poderiam apenas dizer que você tem o tempo adequado às suas necessidades. Você resolverá tudo antes do fim do prazo. Não restará nenhuma pendência. Sobre isto não deve ficar a menor - ou maior - preocupação.
De qualquer jeito, nada disso seria suficiente para deixar-me tranquilo sobre algo que sempre foi minha maior fonte de pavor , deixar pendências, deixar coisas por fazer, deixar coisas por resolver. Não, eu não poderia aceitar isto, não é da minha índole, da minha educação, do meu estilo.
Fui educado dessa maneira. Cumprir todas as tarefas o mais cedo possível, não transferir nenhuma responsabilidade para os outros. Ser determinado e perfeccionista, devia ser assim. Mas ser assim leva muito tempo. E tempo era o que eu não tinha. Ou se o tinha não poderia saber sua exatidão. Quanto tempo?
Como resolver isto? Não sei. Apenas procurarei resolver tudo hoje mesmo, não deixar nada para depois. Teria que deixar tudo totalmente esclarecido, tudo determinado e equacionado. Tudo resolvido e arrumado, tudo organizado. Não poderia deixar um motivo, um mínimo motivo para dar margens a reclamações. Pura e boba preocupação, não estaria mesmo lá para presenciar quaisquer insatisfações.
Mesmo porque não teria como evitar modificações posteriores, modificações que não me agradariam de maneira alguma, e , sim, elas poderiam ser introduzidas pelos que ficassem, pelos que restassem.
O pior de tudo não era a situação profissional, e sim a situação pessoal. Releguei por muitos e muitos anos a minha vida pessoal, minha família, amigos, prazeres. Tudo havia sido sacrificado em nome do profissional. O profissional em primeiríssimo lugar. Tudo mais às favas.
Como consertar isto agora, em tão curto período. Como resgatar agora tão preciosos e esquecidos valores? Como recuperar o tempo perdido quando não há mais tempo? Como justificar tanta dor, tantas frustrações, como sanar tudo agora? Como arrumar toda está bagunça que eu mesmo criei? Tudo espalhado, quebrado, machucado, desorganizado.
Neste momento não sei. Não sei se conseguirei. Sei apenas que vou tentar resolver tudo , tudo mesmo, por uma questão pessoal, pois sei que isto não minimizará, não apagará meus erros. O que fiz de errado não pode ser mais consertado. Pode apenas ser explicado, mas não justificado. Pode ser entendido, mas não compreendido e aceito.
Tarde demais. Muito tarde mesmo. Tentarei organizar todos os meus pertences pessoais e procurar dar a eles uma destinação digna. Todos os livros que não li, todos os discos que não ouvi, todas os filmes que não assisti, todas as fotos que náo curti. Tudo que eu não compartilhei. Tudo o que eu guardei e reservei para futuros melhores momentos. Futuros melhores momentos que nunca chegaram e que nunca chegarão. Agora tornaram-se tormentos.
E os amores que senti e que nunca vivi. Os beijos, abraços, afagos, carinhos que nunca experimentei, nem provoquei. Tudo perdido. Tudo esquecido. Tudo vazio. Poderia eu ao menos ter tentado, o máximo que receberia seria um não e o mínimo um belo tapa no rosto. A dor de um não é maior, bem maior, que a dor de um tapa no rosto. Aquele fere o espírito, a alma, os brios, o outro somente afeta o físico. A dor do primeiro é perene, a do segundo, passageira. Mas nem isso houve.
Pobre vida não vivida. Pobre ser covarde. Ausente.
Pelo menos não mais sentiirei medo de mais nada, preocupação com mais nada, não ouvirei mais nenhuma crítica, reclamação, julgamento, conceitos, preconceitos. Nada mais, não. Nada. Não. Liberdade finalmente. Libertado de todos os meus medos, temores, pavores, fobias. Libertado enfim. Libertado finalmente. Libertado de mim.