Arraial do Tijuco, 26 de novembro de 1.756.
Amado filho,
Deus lhe abençoe. Folgamos em saber que chegou bem a Lisboa e já está instalado em uma boa casa.
Sua irmã Helena deu à luz uma linda menina. Foram duas noites (mais de 40 horas) de parto agonizante, que mobilizou Dona Pilar, Maria Joaquina, Comadre Francisca e a escrava Querência ajudando a parteira, a negra forra Juliana. Todas foram unânimes em contar a bravura e fé de Helena. Após o parto, Joaquina e a Comadre Francisca deram os primeiros cuidados à neném, enquanto Dona Pilar, Querência e a parteira cuidavam de Helena, dando-lhe chás e banhos tépidos.
Helena melhorou e conheceu a filha. Como se parece com ela! José, bom marido e pai zeloso, chorou emocionado ao pegar a filha nos braços, ainda roxinha e frágil do esforço do nascimento. Marvina, tão logo a viu, precipitou-se a dar-lhe o peito. Mas a febre de Helena não passava. Joaquina e Dona Pilar não se afastaram dela um minuto sequer. E fizeram as pazes. Sofregamente, Helena sorriu ao ver as duas conversando e disse que as amava.
Essa é uma história que faz parte de sua vida, meu filho, mas mantemos segredo para não sujar a honra de nossas famílias. Vosmecê é irmão de Helena e de José, pois Dona Pilar é sua verdadeira mãe. Meus pais se comprometeram em me casar com Maria Joaquina, mas meu coração, minha vida, minha devoção eram de Pilar. Desse amor nasceu vosmecê, meu filho, mas os pais de Pilar, no desespero de esconder tudo e não manchar sua honra, a levaram embora para Portugal, deixando-o recém-nascido com meus pais que já haviam me mandado para São Salvador da Bahia de Todos os Santos1. Foi então que decidimos dizer que vosmecê é fruto de um casamento anterior e que eu era viúvo quando me casei com Joaquina. Joaquina, sempre muito perspicaz, soube de tudo e nutriu um ódio ferino por Pilar por toda a vida. Nunca conseguiu sentir amor por vosmecê, que não tem culpa dos erros do passado. Mas no momento em que Helena agonizava e delirava de febre, Dona Pilar demonstrou toda sua gratidão por Joaquina ter criado vosmecê. Joaquina, fragilizada pelo estado de Helena, chorou muito e também agradeceu a Dona Pilar por cuidar de Helena e amá-la e pediu-lhe perdão por não ter conseguido amar vosmecê como a um filho.
Peço que me perdoe, amado filho. Mas caso não tivéssemos feito assim, creio que vosmecê seria alvo do preconceito da sociedade, tido como um filho bastardo quando, para mim, vosmecê sempre foi a mais pura e verdadeira expressão do amor.
Infelizmente, Helena veio a falecer dous dias antes de seu aniversário de dezesseis anos. José está inconsolável e decidiu que a filha deles se chamará Helena, em homenagem à mãe. Dona Pilar e Joaquina choram pelos cantos, mas devotam um amor puro pela netinha. Eu não sei mais de onde tirar forças diante de tantos tormentos, mas confesso que é um consolo olhar para a face inocente de Heleninha.
Muita gente veio ao velório e ao enterro de Helena. Foi anunciada a presença de uma Condessa de Monsanto, o que nos surpreendeu – não esperávamos ninguém da Corte. Surpresa maior tivemos quando vimos que tal Condessa era ninguém menos que Bastiana. Joaquina teve um deperecimento2 e eu não caí porque José estava por perto e me amparou. Bastiana chorou copiosamente ao ver Helena morta e depois, mais calma, contou que o Conde de Monsanto pediu-lhe em casamento depois de conhecê-la no cais do porto de Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii3. Ela disse que não queria viver presa a ninguém e o Conde ofereceu-lhe diamantes e ouro. Ela, que sempre viveu rodeada de ouro, diamantes e outras pedras preciosas, disse-lhe que sua liberdade valia muito mais do que a sua oferta. O Conde insistiu, dizendo que lhe daria tudo o que ela quisesse. Foi então que Bastiana decidiu fazer uma lista de exigências. Se o Conde concordasse, se casaria com ele. Pois o Conde concordou e o único pedido que fez a Bastiana foi que queria conhecer sua família. Pois eles chegaram ao Tijuco no dia em que Helena estava sendo velada.
Quem também está inconsolável é Dona Chica da Silva. Ninguém sabe explicar o amor que ela sempre devotou a Helena. Todos pensamos que ela gostaria de ser uma dama como nossa Helena era: bela, delicada, altiva, digna e devotada.
Padre Eurico fez um sermão piedoso e emocionado. Batizou Helena, deu-lhe a primeira comunhão, fez seu casamento... Disse, emocionado, que jamais pensaria em dar-lhe a extrema unção e tampouco enterrá-la no frescor de sua mocidade. Mas quem somos nós ante os desígnios de Deus?
Como esperávamos, a família do Antônio Torres de Sá Filho contactou a corte em Portugal interferindo na sentença do assassino de Abílio. Para nossa sorte, quando chegou o mensageiro de Portugal, o réu já estava morto – o contratador João Fernandes tem autoridade para decisões sobre sentenças de crimes. Se não fôssemos ágeis o bastante, ainda teríamos este problema em nossas vidas.
Esperamos que com estas notícias vosmecê volte para o Tijuco. Sua mãe, Dona Pilar, não vê a hora de abençoá-lo como filho e pedir-lhe perdão por não ter ficado com vosmecê, por não ter tido coragem de enfrentar seus pais e a sociedade. Boa parte desta culpa é minha, que saí praticamente fugido para a Bahia. Éramos muito jovens e nada sabíamos da vida... Espero que me perdoe, amado filho. Estes anos todos procurei ser o melhor pai, mas sei que nada substituirá a falta que sua verdadeira mãe lhe fez.
Deus lhe abençoe. Reze por todos nós.
Seu pai que o ama,
José Dilermando Gonçalves.
1 São Salvador da Bahia de Todos os Santos – atual cidade de Salvador (BA)
2 Deperecimento – desfalecimento, esgotamento
3 Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii - atual cidade de Parati (RJ)
Amado filho,
Deus lhe abençoe. Folgamos em saber que chegou bem a Lisboa e já está instalado em uma boa casa.
Sua irmã Helena deu à luz uma linda menina. Foram duas noites (mais de 40 horas) de parto agonizante, que mobilizou Dona Pilar, Maria Joaquina, Comadre Francisca e a escrava Querência ajudando a parteira, a negra forra Juliana. Todas foram unânimes em contar a bravura e fé de Helena. Após o parto, Joaquina e a Comadre Francisca deram os primeiros cuidados à neném, enquanto Dona Pilar, Querência e a parteira cuidavam de Helena, dando-lhe chás e banhos tépidos.
Helena melhorou e conheceu a filha. Como se parece com ela! José, bom marido e pai zeloso, chorou emocionado ao pegar a filha nos braços, ainda roxinha e frágil do esforço do nascimento. Marvina, tão logo a viu, precipitou-se a dar-lhe o peito. Mas a febre de Helena não passava. Joaquina e Dona Pilar não se afastaram dela um minuto sequer. E fizeram as pazes. Sofregamente, Helena sorriu ao ver as duas conversando e disse que as amava.
Essa é uma história que faz parte de sua vida, meu filho, mas mantemos segredo para não sujar a honra de nossas famílias. Vosmecê é irmão de Helena e de José, pois Dona Pilar é sua verdadeira mãe. Meus pais se comprometeram em me casar com Maria Joaquina, mas meu coração, minha vida, minha devoção eram de Pilar. Desse amor nasceu vosmecê, meu filho, mas os pais de Pilar, no desespero de esconder tudo e não manchar sua honra, a levaram embora para Portugal, deixando-o recém-nascido com meus pais que já haviam me mandado para São Salvador da Bahia de Todos os Santos1. Foi então que decidimos dizer que vosmecê é fruto de um casamento anterior e que eu era viúvo quando me casei com Joaquina. Joaquina, sempre muito perspicaz, soube de tudo e nutriu um ódio ferino por Pilar por toda a vida. Nunca conseguiu sentir amor por vosmecê, que não tem culpa dos erros do passado. Mas no momento em que Helena agonizava e delirava de febre, Dona Pilar demonstrou toda sua gratidão por Joaquina ter criado vosmecê. Joaquina, fragilizada pelo estado de Helena, chorou muito e também agradeceu a Dona Pilar por cuidar de Helena e amá-la e pediu-lhe perdão por não ter conseguido amar vosmecê como a um filho.
Peço que me perdoe, amado filho. Mas caso não tivéssemos feito assim, creio que vosmecê seria alvo do preconceito da sociedade, tido como um filho bastardo quando, para mim, vosmecê sempre foi a mais pura e verdadeira expressão do amor.
Infelizmente, Helena veio a falecer dous dias antes de seu aniversário de dezesseis anos. José está inconsolável e decidiu que a filha deles se chamará Helena, em homenagem à mãe. Dona Pilar e Joaquina choram pelos cantos, mas devotam um amor puro pela netinha. Eu não sei mais de onde tirar forças diante de tantos tormentos, mas confesso que é um consolo olhar para a face inocente de Heleninha.
Muita gente veio ao velório e ao enterro de Helena. Foi anunciada a presença de uma Condessa de Monsanto, o que nos surpreendeu – não esperávamos ninguém da Corte. Surpresa maior tivemos quando vimos que tal Condessa era ninguém menos que Bastiana. Joaquina teve um deperecimento2 e eu não caí porque José estava por perto e me amparou. Bastiana chorou copiosamente ao ver Helena morta e depois, mais calma, contou que o Conde de Monsanto pediu-lhe em casamento depois de conhecê-la no cais do porto de Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii3. Ela disse que não queria viver presa a ninguém e o Conde ofereceu-lhe diamantes e ouro. Ela, que sempre viveu rodeada de ouro, diamantes e outras pedras preciosas, disse-lhe que sua liberdade valia muito mais do que a sua oferta. O Conde insistiu, dizendo que lhe daria tudo o que ela quisesse. Foi então que Bastiana decidiu fazer uma lista de exigências. Se o Conde concordasse, se casaria com ele. Pois o Conde concordou e o único pedido que fez a Bastiana foi que queria conhecer sua família. Pois eles chegaram ao Tijuco no dia em que Helena estava sendo velada.
Quem também está inconsolável é Dona Chica da Silva. Ninguém sabe explicar o amor que ela sempre devotou a Helena. Todos pensamos que ela gostaria de ser uma dama como nossa Helena era: bela, delicada, altiva, digna e devotada.
Padre Eurico fez um sermão piedoso e emocionado. Batizou Helena, deu-lhe a primeira comunhão, fez seu casamento... Disse, emocionado, que jamais pensaria em dar-lhe a extrema unção e tampouco enterrá-la no frescor de sua mocidade. Mas quem somos nós ante os desígnios de Deus?
Como esperávamos, a família do Antônio Torres de Sá Filho contactou a corte em Portugal interferindo na sentença do assassino de Abílio. Para nossa sorte, quando chegou o mensageiro de Portugal, o réu já estava morto – o contratador João Fernandes tem autoridade para decisões sobre sentenças de crimes. Se não fôssemos ágeis o bastante, ainda teríamos este problema em nossas vidas.
Esperamos que com estas notícias vosmecê volte para o Tijuco. Sua mãe, Dona Pilar, não vê a hora de abençoá-lo como filho e pedir-lhe perdão por não ter ficado com vosmecê, por não ter tido coragem de enfrentar seus pais e a sociedade. Boa parte desta culpa é minha, que saí praticamente fugido para a Bahia. Éramos muito jovens e nada sabíamos da vida... Espero que me perdoe, amado filho. Estes anos todos procurei ser o melhor pai, mas sei que nada substituirá a falta que sua verdadeira mãe lhe fez.
Deus lhe abençoe. Reze por todos nós.
Seu pai que o ama,
José Dilermando Gonçalves.
1 São Salvador da Bahia de Todos os Santos – atual cidade de Salvador (BA)
2 Deperecimento – desfalecimento, esgotamento
3 Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii - atual cidade de Parati (RJ)