EXERCÍCIO DA PALAVRA: O MISTÉRIO DO HOMEM

(para Jimenna Rocha, colega do Recanto das Letras)

Grato pelo retorno aos assuntos tratados na mensagem original de nosso iniciante relacionamento. Gostei de tua desenvoltura. Pareces ter forte personalidade. Aliás, gosto muito de teu nome. Vai funcionar muito bem literariamente. É incomum, e tem efeito psicológico muito forte.

Realmente os afetos são péssimos críticos. Tens razão. De quem é próximo, sempre haverá loas, louvores, principalmente se o autor é jovem. Acham que, assim, estão a ajudar. Claro que temos nossas vaidades, mas não é assim que a coisa funciona.

Temos é de sofrer a provocação, a Antítese ao que está posto em nossas idéias. Esta, frente à Tese (dos embates, discussões), produzirá a Síntese, que, com o tempo e sua sedimentação intelectiva, virá a ser uma nova tese posta. A isto chamamos “DIALÉTICA”, e é uma fórmula pensamental criada por Hans Hegel, lá por meados do século XIX. Os discípulos de Karl Marx se apossaram dela, no plano da discussão econômica, e a usurparam, historicamente. Bem, mas isto é outra história. Dá uma lida, em livro, ou mesmo pela NET, o que é a tal de Dialética, porque isto vai reforçar a tua confiança e predisposição para receber a crítica sobre qualquer assunto. E vais crescer intelectivamente, se te abeberares dela.

Reitero que publiques, no sítio, o teu perfil de escritora, detalhadamente. Não o confundas com o que chamas "diário", como se tais informações com relação aos teus dados pessoais fossem comuns, desimportantes, ou devessem ser veladas. Não é nada disto. Nunca vai ser um diário íntimo, porque é para o consumo público.

Pede-se, apenas, o teu relato como pessoa, a tua existência, aquilo que te leva a escrever. Ganhar concurso literário é bom pra reforçar a auto-estima de autor, mas é quase nada num currículo, entendes? Pouco ajuda pra se saber quem é o autor.

Tenho observado o que consta na página dos autores iniciantes, novos e novatos. Confundem-se dados pessoais – de vida e obra – com outra coisa mais literária, mais impessoal. “Perfil” é o retrato falado do autor inscrito no Recanto das Letras. O detalhamento de sua personalidade e gostos. Ele por ele mesmo.

A maioria escreve um verso, como se poema e autor fossem a mesma coisa. O eu-escritor não é o mesmo do eu-pessoa. Ambos são figuras distintas, com vidas distintas, pessoalidade diferenciada. O real e o irreal produzem histórias de vida diversas, entre um e outro.

Vê o caso do poeta português Fernando Pessoa. Criou os heterônimos e os diferenciou em suas histórias pessoais. Criou até semi-heterônimos, que são aqueles que não tinham personalidade própria. Ele não teve tempo de compô-las individuadamente ou não quis lhes dar realce. O poeta concebeu, graças a sua imensa lucidez, que ele – autor – continha em si muitos personagens. Legou-nos até biografia, com dados imaginários, como se vivos fossem, no plano da realidade.

Pessoa foi tão longe que uma de suas personalidades literárias era “Fernando Pessoa ele-mesmo-o outro”. Informa-te sobre a sua vida. Vale a pena. Procura ler a sua obra, que é monumental. Glória do idioma português.

Cuidado! Reitero que o que passas é uma imensa timidez. Tudo o que entabulas é reticente... Talvez alguma insegurança... Talvez transpareça a tua personalidade adolescente. Estarei correto?

Qual a tua idade? Estás estudando em que escola? Ela é da rede pública ou privada? Qual o teu grau de escolaridade? Tens biblioteca familiar? O que tens lido, em prosa e verso? Quais os autores que te aprazem, que te fazem a cabeça? Onde moras? É cidade grande ou interiorana? Moras na cidade ou zona rural? Tens defeitos físicos ou doença crônica? Fazes esporte regulamente?

Tens bom relacionamento com os teus afetos? Já amaste? Quantas vezes? Tens coragem pra abrir o coração sobre tal? És capaz de fazer o teu confessionário? Esta conversa pessoalíssima para com o papel, sincera, detalhada, limpa, meio ingênua, fruto da inspiração, é o feto do poema, mas ainda não é POESIA! Mas este embrião de poema é o fruto do ato de amor que entontece os condenados a pensar.

É necessário, no entanto, o segundo momento de criação: a transpiração, para vir a se congeminar o verdadeiro poema. Este espécime é obra plena de Poesia, identificado pelas características peculiares a este gênero: o Poético.

Publicar livro sempre dá ao analista literário a notícia de que foi percorrida uma longa estrada. O que estamos a fazer aqui já é aquisição e propõe trocas, reforça a auto-estima e dá algumas dicas.

Manda sempre cartas extensas. Revela-te! No mínimo, exercita a linguagem... Lembra sempre que do nada nasce o nada! Como saber o que o interlocutor pensa? Cada pessoa vê o mundo à sua maneira e o recria como gostaria que fosse... Esta ótica vai transparecer na criação literária.

Precisas conhecer o teu interlocutor e agudizar a cabecinha pra ver como se escreve tal ou qual palavra ou expressão. Isto faz a diferença. Escreve sempre, sempre. Por certo, se leres, leres, leres, bastante e sempre, se perseverares no intento, acharás mais facilidade para tal desafio. Escrever é o desafio que conduz ao mistério. E poucos o revelam, mesmo que sempre enredados nele.

Em conversa informal, como num e-mail, nunca pede desculpas tendo por base a extensão do texto da mensagem remetida. No poema ou na criação e inventiva em prosa, literariamente, há que ter mais cuidado, ser mais contido, medir as palavras, sentir o som delas...

Na conversa informal, a palavra aparece com o seu vestido de lida diária, vestes comuns. Na poesia, em particular, a palavra traja seu vestido de festa. Deve estar bem bonita, sugestiva, transcender aos olhos costumeiros, propor algo que está na entrelinha, OK? Não tem, a rigor, efeito prático imediato, não deve ser transposto diretamente à realidade.

Mas, em verdade, o texto literário fica batendo na cabeça como um sino que anuncia um casamento, a boa-nova para ser compartilhada, que dará frutos, que recriará a vida nos filhos, vida em movimento, para o bem da comunidade...

Bem, quanto à perpetuidade da obra, é juízo que o tempo fará. E são tão poucos os que ficam em cada idioma a cada milênio!

– Do livro CONFESSIONÁRIO – Diálogos entre a Prosa e a Poesia, 2007.

http://www.recantodasletras.com.br/cartas/342117