Eu, Gabriel

07 de julho de 2011. Meu nome é GABRIEL

O câncer já afetou minhas vias pulmonares. Não consigo respirar direito. A técnica de enfermagem precisa aspirar minhas vias aéreas constantemente, e isso me faz sofrer mais ainda. Tenho que tomar remédios a base de morfinas para suportar as dores na cabeça. O câncer alojou-se e desenvolveu-se no bulbo cerebral e em menos de dois anos me deixou neste estado.

No estado quase vegetativo em que me encontro, até ontem eu conseguia ouvir as coisas e me comunicava com sorrisos e mensagens com os dedos e gostava de assistir os desenhos na TV.

Nesses meus sete anos de idade, faço, sem querer, todos os que estão à minha volta, sofrer, chorar e se tornarem impotentes, inclusive minha médica pediatra.

A minha oncologista não conseguiu ficar comigo para presenciar a chegada da minha morte e por isso passou para minha pediatra.

Minha mãe e meu pai são um sofrimento só. Minha mãe não agüenta ficar só sem meu pai, pois os dois se complementam em forças, mas meu pai tem de viajar muito para manter o nosso padrão de vida, que me proporcionou esses últimos anos de vida, felizes. Plano médico, ótimo apartamento em bairro nobre, melhores brinquedos, melhores comidas e divertimentos. Ótima escola. Tudo o que um menino pode querer da vida. Coisa materiais que não mudam meu estado atual.

Mais ele tem medo de, durante a viagem, eu partir para o céu sem me despedir dele sem ao menos um olhar. A doença me cegou um olho, mas consigo ver precariamente com o outro. Gostaria de morrer com meus pais junto de mim. Não tenho medo de ir ver papai do céu, mas vou ficar com saudades de tudo.

Eu ouvi uma conversa que sou o terceiro filho que eles tiveram e não conseguem criar. Os dois primeiros foram meninas. Uma delas, nem saiu da UTI da maternidade, pois nasceu prematura e teve que ser assistida durante dois meses, não resistindo. Mas eles são teimosos.

Ouvi dizer que papai vai querer adotar uma criança, mas ainda vai tentar mais um filho com mamãe. Tomara que dê certo. Gostaria de vê-los lá do alto, felizes aqui na terra com meu novo irmaozinho.

Não sei quanto tempo ainda tenho. Meu pai teve que viajar ontem à noite muito a contragosto, mas a empresa depende dele. Ele disse à minha mãe que gostaria de largar tudo para ficar comigo, mas não pode. O mundo do sistema sempre coloniza o mundo da vida e as decisões de buscar a felicidade são complexas, pois o homem urbano tem juízos inamovíveis em relação ao dinheiro e é algo difícil de se desconstruir.

Mas tenho que aceitar, pois se eu não morresse, crescesse, estudasse e me formasse em alguma profissão desse sistema, teria as mesmas preocupações de meu pai e minha mãe. Aliás, da grande maioria dos homens na atualidade.

Mas, por que estou falando assim? Sou uma criança. Vejo o meu quarto decorado especialmente para mim. Meus brinquedos. A alegria infantil em meu coração, mas ao mesmo tempo, sinto o peso da vida na minha velha alma. Meu espírito me faz pensar desta forma, apesar de eu saber que sou uma criança e não tenho conhecimentos ainda. Acho que estou pensando como adulto, pois o meu espírito é adulto.

Às vezes, vejo meu corpo do alto do quarto. Assusto-me, vendo a técnica e minha mãe ao meu lado. Mas sei que ainda não morrí! Descubro que estava em um dos meus poucos sonos e volto para meu corpo.

As dores voltam. Havia esquecido. Quanto tempo ainda ficarei assim? Os médicos dizem que posso ir a qualquer hora, mas não tenho pressa. Não queria ir.

Às vezes vejo sombras ao meu lado. Mãos que se estendem me acalmando e algumas vozes me chamam carinhosamente. Algumas, eu sinto conhecer, mas não consigo distinguir. Não sei para onde vou. Outras vezes, vejo luzes brilhantes que me atraem.

Espero que meus pais consigam superar a dor de me perder, pois eu gostaria de sentir felicidade nas energias que advirão deles para mim, na minha nova vida. Não sinto mais dores. O que eu puder fazer por eles dentro da minha nova perspectiva, eu farei. Foram os melhores pais que eu já tive em tantas idas e vindas. Nunca senti tanto amor e dedicação, principalmente durante a evolução da minha doença, nestes últimos dois anos. Agradeço a Deus ter nascido entre eles e é uma pena o conjunto carnal deles não poder gerar um filho perfeito organicamente.

Estou pensando isto tudo, mas não sei de fato, o que está por vir, e sinto receio do desconhecido. Mas Deus vai me dar forças para superar esse medo e provavelmente encontrarei pessoas conhecidas que me amam e me ensinarão as coisas novas do lado de lá.

Acho que ainda hoje me despedirei de todos mentalmente, dizendo adeus e abraçando cada um, pois estou em coma induzido devido às minhas dores que estavam insuportáveis e já estava em crises convulsivas.

Ainda bem que minha mãe atendeu o meu pedido quando ainda estava no hospital. Não queria morrer lá. Queria estar entre os meus brinquedos, no meu quarto, no meu lar, com meus pais. Apesar de vê-los sempre chorando junto a mim, não creio que no hospital seria melhor. Amo-os muito e peço a Deus que sempre os abençoe.

Hoje, colocaram roupas bonitas em mim, me pentearam. Estou num lugar muito bonito, cheio de árvores e muito capim, jardins. Parece uma grande alameda. Será um cemitério? Acho que já está na hora de ir para os braços de meu paizinho do céu. Minha mãe e minha avó choram muito. Meu pai está muito abalado. Tenta receber os amigos sem chorar, mas sei que está se controlando. Acho que estou no meu velório. Parece uma festa de tanta gente. Muitos amigos de meu pai e minha mãe vieram para dar apoio.

Quanto ao mundo da vida e do sistema, fica pra próxima. Tentarei mudar algo do que está aí, no meu novo invólucro carnal. Espero que não demore de voltar. Espero encontrar pais iguais a estes (ou, quem sabe, eles mesmos) que tive para ser um bom homem, com fé em Deus.

Não estou sentindo mais dores. Estou me sentindo ótimo...

Gabriel