O EXERCÍCIO DA AMIZADE

(a Luiz Felipe Saratt, poeta, 26 anos)

Meu pré-amigo Felipe! Digo assim pra não vulgarizar o conceito que tenho de AMIZADE, que é uma flor do tempo. No entanto, percebo que seremos amigos, verdadeiramente. É só uma questão de tempo, de exercício e de oportunidade. Algo como deixar a inclemência do tempo dourar a cabeleira das espigas de trigo, nas encostas dos cerros. Leva algum tempo, perdem-se algumas safras, mas os grãos vão melhorando em qualidade, ao ponto de se tornarem sementes para outras searas.

Obrigado! Muito grato pelos ‘dois dedinhos de prosa’ de ontem, após o evento cultural promovido pelo Benedito Saldanha, dando azo a sua cria espiritual, o Jornal Revolução Cultural.

Percebo que tens a marca que identifica os homens e mulheres fora do "lugar comum da vida": a condenação ao pensar. Já te disse isto, em palestra pessoal.

Nesta expressão está embutida a minha admiração pelo teu talento jovem, brilhante, próprio de quem estuda e tenta formar conceitos, definições. No mínimo, o vivente busca saídas, caminhos. Recompila-se no plano do real, o que disse Antonio Machado, em sua metáfora poética: “Caminante, no hay camino, / se hace camino al andar.”.

Nunca te preocupes com o tal de 'puxa-saquismo' (como mencionas em tua carinhosa mensagem), isto só existe quando um dos pólos tem algo a dar, materialmente. Sei bem o que é isto, já participei do processo político do Poder. Naquele tempo tinha algo a oferecer e, confesso, intrigava-me o preço baixo dos interlocutores, dos requisitantes de favores vários.

Não há nada mais asqueroso, mais aviltante, do que esta conduta de desmiolada louvação. Ela nos deixa sem saber o que dizer. Se a gente agradece, parece concordar; se não a agradecemos, corremos o risco do cometimento de grosseria. Calar sempre é a melhor regra de conduta.

O que faço hoje, no plano intelectivo e no de seu exercício, é minimizar a solidão do conhecimento amealhado, mesmo que me sabendo detentor de pouco ‘café no bule’ para a idade da sabedoria, que fica em torno dos setenta anos. Anseio chegar lá mais preparado, mais curtido de mundo, de tropeços.

Mas o que me move, por ora, é partilhar com os jovens o pouco que sei frente aos sábios. Mas, mesmo assim, insisto aos ouvidos moucos. Algum lá que outro sente-se tocado pela instigação, pela provocação ao pensar.

Sempre seremos poucos, num país que lê minimamente. Ainda mais em arte poética, coisa difícil e de exercício tão inútil. Mas a inutilidade me desafia ao belo estético.

Sabe, com 60 anos, ficamos com vontade de formar escola, de alimentar as cabecinhas dos mais jovens, dos que floreiam o conhecimento fazendo amigos, tentando beber água na fonte... E fazemos trocas deveras interessantes!

Não vês agora? Se não tivesses lavrado por escrito as tuas impressões, não estaria eu a redargüir, a conversar contigo tantas inutilidades. Estás me dando o gancho até de vir a publicar no Recanto das Letras esta prosa entre amigos dedilhando a harpa da fraternidade, solando a melodia desses bons ventos de final de ano, quando nos tornamos mais amenos, mais desejosos de confraternidade.

Conheço, neste lapso de minha vida, o que vem da antiguidade: a sorte e a admiração fazem discípulos, com o que se pode retro alimentar a angústia sofrente de esperanças, numa via de duas mãos...

Como bem o sabes – confessei isto na palestra de ontem sobre a figura inusitada do grande poeta Fernando Pessoa – sou confesso admirador da dialética hegeliana: que bom ser a tese e que tu sejas a antítese. Ganharemos os dois quando sobrevir a SÍNTESE...

Grato por tuas leituras em minha página no Recanto das Letras, a toca da virtualidade internáutica, na qual a interação é a palavra de ordem. Vale tudo entre os escribas de vários degraus da escada do exercício e do conhecimento.

É de se repetir pleonasticamente: caminho se faz ao andar. E é no andar da carreta que as abóboras se acomodam...

– Do livro CONFESSIONÁRIO - Diálogos entre a Prosa e a Poesia, 2006.

http://www.recantodasletras.com.br/cartas/331743