Carta a um alguém

Nosso retrato, aquele gasto pelo tempo e pelo tato, ainda está na estante. Fazendo-me recordar de palavras sem ecos ou as memórias proibidas. Como se n'um papel pudéssemos eternizar o instante de um futuro desejado. Não sei se foi à saudade que se infiltrou no meu sossego ou apenas a nostalgia que um dia de Outono trás. Irrelevante face ao desejo da lembrança, tentei afugentar a sombra teimosa do passado, a imagem dos sorrisos que perdi. E naquela dança de movimentos em que os sentidos se envolveram apenas consegui abraçar-te.

Está frio. O frio teimava em me expulsar, mas a vontade de me perder por estas linhas, obriga-me a permanecer. Bati as mãos frias e despertei para a realidade, naquele cenário solitário e sem abrigo, uma vez mais te aprisionei na ilusão de um sonho, e naquele recanto isolado da vida, perdido na mente, sem testemunhas dos nossos delitos, liguei para o teu número. Mas do outro lado apenas uma voz fria: "Não posso lhe atender no momento..." Atirei a um lugar qualquer aquele objeto de amor portátil. - Continuei - Olhei a folha em branco, queria escrever, mas as palavras apenas repetiam o teu nome, escrevi, risquei, vezes sem conta, como se pudesse esvaziar o peito da tua presença. Escrever, como se dessa forma pudesse realizar o desejo, redimir-te dos carinhos que esqueci na pressa de te amar. Rasgar, a última opção, sem limite, sem medida, apenas rasgar, até que o cansaço me devolvesse à lucidez, me libertasse da impotência de querer dizer algo e não conseguir...

Tentei imaginar cenários onde as palavras se encaixassem, só consegui fixar a tua imagem ainda mais em mim, o teu jeito infantil, doce como me tentavas naquelas noites em que nos perdíamos a sonhar. Foi fácil descobrirmos o quanto éramos semelhantes, dois obstinados, perdidos no espanto da descoberta, a vida sem sal era inútil.

Vivemos na dependência do diário, do constante, esquecemos o mundo que nos sufocava e explodíamos Escrever-te era imperioso, como uma imposição da minha mente, curioso como se metia nos assuntos do coração, perdi a conta das tentativas, as bolas de papel eram a prova da minha incapacidade de te espantar, de agitar todo este amor que sinto por ti, mas as palavras são como setas, por vezes falham o alvo. Forcei a minha memória, tentei descobrir nos arquivos as chaves secretas para a tua alma, apenas o silêncio me inundava.

Olhei à minha volta, num apelo mudo e desesperado, precisava te encontrar n'uma folha no meu quarto. Como era fácil escrever-te... e naquela solitária enviei a eternidade... Num... AMO-TE. Regressei, lembrei a tua voz quente e doce, sempre bondosa.

Apenas deixei a alma falar, envolver as palavras eram apenas mais uma forma de fazer com que você soubesse tudo o que estava aqui dentro. Tentei descobrir o teu nome naquele copo café requentado, mas só consegui ver o fumo que se evadia e que me trazia a lembrança de tudo o que fizemos juntos. O que estarias a fazer neste momento? Tentei colorir o vazio que se instalava, como se o dia se tivesse demitido de convencer o frio, espantar as nuvens que seduziam o sol e quem sabe descobrir-te algures naquele céu imenso. Imaginava-te chegar, mesmo sabendo que estava longe, a partilhar comigo todas as memórias vividas. Limitei-me a ver-te partir, sem hesitação, queima-te as asas para que o desejo não se elevasse, nem o meu adeus levaste. Amor, só agora percebi de como és única e a fragilidade que aparentemente me oferecia era tão pura como tu. Lembro-me de todas as aventuras e loucuras que fizemos, tudo que passamos, escondemos os segredos que carregamos, onde nasceu o desejo de eternizar a magia que as paredes testemunhavam.

Sabia que partirias sem aviso, nem um adeus me deixaria, apenas o suspense, a dúvida que um dia voltaria. Tentei lhe prender com todas as minhas forças e talvez fosse à força do desejo te rendesse à esperança de um amanhã sonhado. A ilusão de quem só tem um futuro, para quem nada mais vale sem o teu cheiro, o teu sorriso, talvez um dia a realidade me surpreenda e te traga de volta e aquele rio onde o amor se esconde. A tua nudez, os teus cabelos, o teu olhar imenso como o mar faziam inveja a muitos pintores. Eu, guardião solitário da tua beleza, dos tesouros que me oferecia, divagava pelas fantasias que a paixão inventava...

Sabes amor, o nosso pacto não incluía a dor, apenas a saudade, a boa memória efémera de um passado à prova de bala e a eterna dúvida das conversas inacabadas. Recordações do sentido do meu sentimento, um dia fatídico. Estremeci, tocou naquele dia o meu celular, eras tu... Vinhas ao meu encontro. Pedi à solidão que nos deixasse a sós, tínhamos uma batalha a travar e não queria que fosse atingida pelo acaso, procurei as armas para te vencer, mas apenas descobri despojos da tua presença. Acho que fui bebendo naquela esperança sem sentido, sem saída, até que a minha embriagada tristeza se diluiu no ar frio.

Tornei-me maior do que sou porque as minhas palavras a desejam ser, porque transportam a voz da minha alma. Tal como um vidro vulgar reflete o sol de uma forma mágica, assim eu sou. Parto sem rumo, todos os horizontes se aceitam, todas as missões são possíveis, todos os sonhos são legítimos. Ficam as memórias de um tempo sem tempo, de um espaço onde o sol e estrelas coexistiram em harmonia perfeita, de um sonho por inventar. Deixo-te no silêncio de um adeus, de um beijo roubado pela saudade que sinto.

Talvez nunca te descubra nos sinais que me deixava e me perca no labirinto da dúvida. Mas, enquanto puder caminhar seguirei o teu rastro, até onde a vida me levar. Amar é viver na corda bamba e o fim apenas a consequência de quem o fez demais e esgotou a necessidade. Espero que me perdoe um dia pelo mal que te possa ter causado. Quem sabe se esse dia esteja perto.

Disritmia
Enviado por Disritmia em 29/09/2011
Reeditado em 29/09/2011
Código do texto: T3248002
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