Amor, Divina - mulher

Amor, Divina - mulher

BsB, 21 dezembro de 2006.

Ô meu caro amigo, quanto tempo! Estava sentindo sua falta. Você sabe que é o meu Porto Seguro, o meu muro de sustentação, a minha Pedra Fundamental, o meu espelho retrovisor. Quando venho aqui relatar pra você as minhas angústias é porque os bichos estão me pegando, é porque a dor está brincando comigo, é porque estou precisando da sua ajuda. Sempre lhe falei que escrever é como viver: cada palavra é um corte, cada sentença é uma pena de morte. Ainda assim, por favor, não me leve muito a sério. Porém se lhe disserem que “procurei remédio na vida noturna” pode acreditar, mas estou de olhos tão abertos quanto o Cristo Redentor e tão sóbrio quanto a Dama da Noite.

Falar dessa andança é como brincar com o fogo e a água em noite de verão, mas às vezes brincadeiras como essa, doem, doem muito, doem lá no fundo do peito. Isto acontece porque volta e meia saio por aí, sou obrigado a fazer de conta que somos bons amigos, companheiros de longas batalhas. Não sei se conseguirá entender-me, mas vou lhe explicar como se você fosse uma criancinha de colo, um menino de berço. Ontem fui convidado por minha “amada” para irmos a uma festa de confraternização - dessas de fim de ano. Acho legal esse tipo de comemoração. É uma oportunidade para uma aproximação maior entre as pessoas, principalmente aquelas mais arredias e distantes. Ainda mais nos dias de hoje, quando passamos a maior parte do nosso tempo de vida útil, no nosso local de trabalho, que é, historicamente, a nossa segunda casa. Mesmo quando ela parece estar prestes a ruir. Minha “amada” e eu combinamos que cada um de nós ficaria em um canto da boate com os seus respectivos amigos ou colegas. Imaginei que lá pudesse encontrar algum conhecido, até porque a nossa cidade não é uma grande metrópole e nem tem muitas casas noturnas. A maioria das pessoas são conhecidas umas das outras. Mas por ironia de uma fatalidade, não esbarrei em qualquer ser humano que fosse meu amigo de verdade, alguém que ficasse por ali comigo, como se diz na minha terra, fazendo sala. Por outro lado e para minha surpresa, minha “amada” era mais popular do que o próprio idealizador do evento. Não sei se foi por coincidência ou se foi por um acaso desses que acontecem de cem em cem anos. Ela fincou pé em uma mesa que dava para a porta de entrada do recinto. Ali, bem ali, onde tudo acontecia, onde todos passavam. Eu, meio que deslocado, fiquei próximo a uma das extremidades do balcão do bar, na expectativa de que alguém viesse e puxasse uma conversa dessas de mesa de boteco de ponta de rua. Esta estratégica não foi boa, fiquei de costas para a entrada. Nisso, precisei ir ao banheiro, quando voltei já havia um outro cidadão naquele lugar onde eu tinha me colocado com tanto cuidado. Pelo visto ele estava com a mesma dificuldade que eu, ou seja, estávamos literalmente sós.

O tempo passava como se ela fosse uma caça que estava sendo desossada por leões vorazes. Nada dava certo!

Comecei a perceber que a brincadeira não teria um final feliz. Tentei falar com ela, mas nada, ela não arredava pé do nosso acordo. Eu olhava, eu fazia careta, eu andava de um lado para o outro e, nada! Parecia que ela estava testando minha capacidade de espera. Nada, absolutamente nada, a fazia olhar para mim. Isto me deixava mais apreensivo e cabreiro. Senti na pele que havia feito um péssimo negócio, um acordo esdrúxulo. Fiquei mais perdido do que cachorro velho quando cai da carrocinha.

A banda estava um capricho. Primeiro tocou - Eu vou tirar você desse lugar, de Odair José. Já no finalzinho da festa buscaram lá no fundo do baú uma música do sexagenário Roberto Carlos que se chama - A garota do baile. Como eu sei que você não conhece essa pérola da Música Popular Brasileira, vou transcrever aqui alguns versos para que você conheça de perto a razão da minha indignação: “a última dança/já vai começar/ela entende o meu olhar/dispensou a multidão/e eu pude então/e eu pude então/e eu pude então/com ela dançar”. Você acha que ela foi dançar comigo? Foi nada, continuou na dela. Ela estava radiante, uma deusa em carne e osso. Dispensava qualquer comentário. Mas pensei comigo mesmo “sou filho único, tenho minha casa pra olhar//não posso ficar, não posso ficar...” Rumei em direção à porta de saída a passos compridos, não olhei para trás, no que ela agarrou-me pelos braços e perguntou?

__Onde você pensa que vai?

__Vou para casa, para mim, a festa acabou.

__Como assim?! Não havíamos feito um acordo?

__Sim.

__Então?

Contei até dez... Pensei, pensei e perguntei.

__Você é uma deusa ou uma puta?

Ela olhou-me no fundo dos olhos e sussurrou em meus ouvidos: __ Uma puta, uma puta.

Meu amigo eu não sabia o que fazer. Dois minutos mais tarde ela desarrimou: __ A Dama da Noite pode tudo, pode tudo...

Ainda foi obrigado a ouvir “Fecharam-se as portas/tive que sair/mas sair de que jeito/se nem sei o rumo para onde vou/eu bebi demais e não consigo me lembrar se quer/qual é o nome daquela mulher/a flor da noite da boate azul”. Confesso meu amigo... Saí de lá grogue sem ter tomado uma única gota de álcool.

Foi aí que entendi que as “deusas” são como as flores dos campos que ora estão floridas, que ora servem de pasto aos olhos dos homens de boa vontade.

Um grande abraço e Feliz Natal!!!...

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 21/12/2006
Reeditado em 05/12/2022
Código do texto: T324262
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