Minha Querida, Saudações!
“E que eu fique mal explicado.
Nada faço para ser entendido.
Quem faz sentido é soldado.”
(Mário Quintana)
Uma leitora da poesia “Rock Na 3ª Margem Do Rio” escreveu-me um e-mail sugerindo que eu explicasse o que o poema queria dizer. Ela dizia não ter entendido nada. Não sei ao certo o que ela gostaria de entender. A percepção da poesia das coisas, das rotinas de vida entre o nascer e o por de sol, depende da sensibilidade, da visão de vida de cada pessoa.
Por outro lado, quem escreve deseja ser compreendido. Ter seu texto adotado enquanto lição de vida ou mera fruição estética. Os efeitos da criação literária, quem os pode prever ao certo? A diversidade perceptiva dos versos depende de cada ensejo diverso.
A relação entre autor e leitores, quem pode dizer ao certo como será? Depende de processos mentais. Alguns profundos, outros superficiais. Ambos se dependem de maneiras diferentes. Assim como as relações entre os eu, sub-eu e inconsciente. Por vezes não é fácil identificar por que o autor escreve e não recebe a compreensão do leitor. Vou tentar respondê-la:
Os movimentos musicais da juventude começaram a acontecer na década de sessenta. A dita “década que nunca morre”. Por quê? Porque nela surgiram os primeiros vagidos de uma geração que nascia de uma gestação da grande mãe chamada História. Ela nunca havia parido anteriormente filhos cujo cordão umbilical ao ser cortado, os lançou num mundo nunca dantes navegado pelas gerações anteriores.
A gestação dessa geração durou não apenas nove meses. Essa geração parida nos anos sessenta permaneceu no ventre bojudo da mãe Homo sapiens por 250 mil anos. Os acordes musicais de uma banda chamada “The Beatles” chamou a atenção da comunidade humana globalizada pelo rádio de pilha e pelos jornais TVvisivos noturnos, para um acontecimento inusitado:
Os quatro adolescentes do sexo masculino tinham ousado cortar o cordão umbilical que os separava do ventre materno (nada maternal) no qual haviam permanecido por nada menos de duzentos e cinquenta milênios. Os vagidos dos recém-nascidos se propagaram através das ondas de rádio e TV.
O trêmulo vagido eletrônico globalizado produzido pelas guitarras, baixos, pianos, baterias, flautas, maracas, violões, harmônios, gaitas, pandeiros, ukuleles, bongôs, sitar, e um sem número de instrumentos de percussão improvisados pela Banda, chegaram em sonoras ondas aos ouvidos de bilhões de membros da comunidade Homo sapiens/demens, conhecida na Europa por Cromagnon.
Começa na década de sessenta o processo de extinção definitiva dos últimos remanescentes da espécie Cromagnon (Homo sapiens/demens). Havia não apenas nascido, mas se propagado rapidamente, na velocidade da luz, a cultura eletrônica dos filhos da espécie “Homo eletronicus”. Acabara de ser criada. E rapidamente disseminada via mídias eletrônicas.
Pela primeira vez na história sapiens/demens um grupo de rapazes se libertara da coleira curta da dependência cultural, financeira e econômica de um mercado de trabalho atrelado aos processos de produção industrializados pelos interesses exclusivistas e elitistas estabelecidos pela cultura econômica e política da exclusão social pelo acesso exclusivo a esses bens reservado apenas à autodenominada “elite” social.
Anteriormente ao vagido dos recém-nascidos da espécie “Homo eletronicus”, a juventude deveria aceitar calada a condição de escrava com carteira assinada pelos detentores do poder político e econômico: os banqueiros, a classe patronal e os barões do lucro pecuniário. Todos estes protegidos pela superestrutura social dos membros dos poderes político, jurídico e policial (forças armadas).
A situação estrutural (política, econômica, jurídica) da sociedade não mudou nadinha desde a década de sessenta. Mas os berros dos recém-nascidos abriram caminho para iniciativas pessoais e grupais muitas das quais, ao mesmo tempo em que participam do bolo produzido pela riqueza da sociedade eletronicamente globalizada, não param de influenciar a opinião pública sobre os processos sociais há muito tempo estabelecidos, que continuam a escravizar sadicamente a grande maioria de seus membros.
Após a vitória dos Estados Unidos sobre o bloco ideológico sob comando, comunicação e controle da ex-União Soviética, as pessoas do mundo globalizado eletronicamente foram induzidas pelas mídias à aceitação deletéria e passiva da dominação econômica da sociedade universal pelo único poder que passou a viger desde então: se você tem grana, pode tudo. E está garantido, teoricamente, em última instância, pela blindagem política, jurídica e policial.
Nessa sociedade os principais esquemas de corrupção em massa são geridos por partidos políticos empenhados em fazer acontecer a drenagem da riqueza social para aqueles membros dos Três Poderes que a si próprios garantem a impunidade de seus membros ricaços da Praça é Nossa dos Três Poderes.
O resto da sociedade fica com os restos que caem da mesa farta de uma saciedade que não se farta na improvisação dos meios de assaltá-la. Meios criados por aquelas autoridades que deveriam zelar pelo bem-estar social.
Aquele vagido inicial da Banda Beatles permitiu aos jovens a inserção na sociedade dos providos de meios econômicos e jurídicos que denunciam os esquemas de apropriação indébita dos bens sociais pelos membros dos poderes que promovem uma educação social para a prostituição, o tráfico e a degradação acelerada dos processos físicos e mentais das crianças e da juventude.
O mundo eletrônico das mídias é gerido por meia dúzia de conglomerados que detêm os meios de comunicação, informação e formação de mentalidade padronizada. Padronizada pelos interesses econômicos e políticos dos velhos ritos e paradigmas há muito estruturados pela mentalidade sapiens/demens de há 250 mil anos.
Não sei se minha rara leitora compreendeu essa explicação da poesia “Rock Na 3ª Margem Do Rio”. Por via das dúvidas e dúvidas das vias, direi mais umas duas ou três coisas que poderão ajudá-la na empreitada intelectual que, suponho, por certo ela aceitará o desafio de tornar compreensível a incompreensão.
O vagido primal dos recém-nascidos incluía um item que precisa ser considerado com atenção: a Qualidade melodiosa, literária e poética do berro dos que nasceram de uma gestação de 250 mil anos. A mãe Homo sapiens/demens os pariu, mas não os geriu intelectual e culturalmente. Vamos simplificar para este texto não sugerir certa e indispensável grandiloquência:
Bob Dylan e a marijuana, assim como influências culturais que se tornaram evidentes pelas referências sugeridas na capa do oitavo álbum “Sgt. Pepper´s Lonely Hearts Club Band”, conduziram os recém-nascidos da fase “topten” (“moptop”) ao salto de Qualidade na poética da Banda. Das chalaças e momices adolescentes mostradas no filme de Richard Lester à poesia de “Rubber Soul” (Alma de Borracha) muita água havia passado sob a ponte entre as espécies cromagnon e eletronicus.
Anteriormente à “Rubber Soul” (1965, 6° álbum) os recém-nascidos estavam compondo, segundo Lennon "“à La Everly Brothers e Buddy Holly: músicas pop e nada, além disso... Meu primeiro grande trabalho, “In My Life”, até então tudo o que havia feito tinha sido vazio e descartável"”.
Para você ver, minha cara rara leitora, para nascer Homo eletronicus não é difícil. Difícil é empreender a jornada em busca de queimar etapas até chegar à condição de se dotar de Qualidade poética. E perceptiva. Você se estará perguntando “que raios que o parta que esse cara está dizendo? O que isso tem a ver com minha pergunta”?
Calma, querida, eu compreendo sua ansiedade pelo resumo de uma resposta que não é muito fácil de construir a partir da sua inteligente pergunta. Quero dizer com minha poesia, que toda aquela movimentação de 100 mil pessoas (?) soçobrando os braços no “Rock Na 3ª Margem Do Rio” nunca lhes daria a sabedoria de querer libertarem-se das influências emocionais e culturais da espécie cromagnon, com piruetas braçais e reproduções vocais de refrãos dos astros do entretenimento de palco.
O que eu quero dizer é que no “Rock Na 3ª Margem Do Rio” as únicas partes envolvidas que ganharam alto, foram os artistas que faturaram os cachês milionários. Os lucros magistrais das empresas envolvidas na organização e no merchandysing do evento. 90% daquelas pessoas foram conduzidas ao grande curral desse entretenimento movidas pela hipnose exercida pelas mídias interessadas unicamente em faturar.
90% daquelas pessoas da platéia do “Rock Na 3ª Margem Do Rio” não tinham a mínima noção do que significava, em português, as letras das músicas que estavam sendo cantadas pelos astros e atrizes do palco. E seus efeitos eletronicus especiais. Coisas da vida. Para quem é usado como massa passiva de manobra em eventos de pão & mico. De circo.
Mico de circo, querida. Você começa a compreender agora?
O que eu quero dizer, minha querida, cara e rara leitora, é que se você não criou as condições de viver um período de sua vida longe das influências que te pegaram pelo cocuruto desde o momento em que você nasceu, e não esperaram muito até começar a bater em seu bumbum para fazer você chorar e não se engasgar, e poder respirar sem os resíduos do sangue vaginal de sua mãe e do líquido amniótico a lambuzar internamente sua boca, suas fossas nasais, seus ouvidos...
...Se você não criou, juntamente com outros 100 mil membros de sua geração, as condições de se distanciar provisoriamente das influências culturais que trazem você, suas supostas ideias, sua suposta vontade de viver, sua perene percepção do mundo induzida pelas mídias eletrônicas, na coleira curta das rotinas do salário e ganhos (por vezes do tipo michê)...
...Dificilmente você conseguirá com esse “know-how” de macaca de auditório, pulando e pulando, e movendo os braços esticados para cima ora para um, ora para o outro lado, depois de ter ingerido uma pedra de LSD ou um comprimido tipo “ecstasy”, ou se aplicado de anfetamina nos canos ou feito a cabeça com um cigarro de marijuana... Após plugar uma carreirinha da branca...
...Mesmo que você esteja no último ano da faculdade de medicina, economia ou de direito, essa pantomima programada pelas mídias não te dotará do mínimo sentimento de auto-estima, nem das associações neurológicas necessárias a te fazer uma pessoa melhor e com uma percepção mais adequada da realidade que te cerca, te envolve e fará dos teus filhos e de toda a descendência deles, escravos desse processo de entretenimento...
...Processo este, para o qual você comprou ingresso como quem paga uma dose mortal de veneno mental e ainda se acha uma vaquinha de presépio privilegiada a participar da visualização de luzes, efeitos visuais e sonoros, todos com nomes “high-tec” da mais recente produção de “spotlights” e “spots-lights” com todas as cores do arco-íris e mais umas trezentas mil nuances “animais”. A mesma mentalidade do tipo “é uma brasa, mora, bicho”? Ou “quando eu estou aqui vivendo este momento lindo...”
O que eu quero dizer, minha rara, cara e querida leitora, é que, se essas cem mil pessoas estivessem questionando a cultura e a civilização da Praça É Nossa Dos Três Poderes Do Alvorada na estrada, dormindo em “sleep-bag” nos acampamentos improvisados nas montanhas, nos vales e nas praias (por favor, sem nenhum saudosismo dos anos sessenta) toda essa cultura que te prende a um ventre e a uma gestação de 250 mil anos, estaria em vias de te parir...
...Quem sabe você forçaria um parto que poderia fazer você dar um salto cultural de Qualidade perceptiva e, como num conto de ficção científica, cruzar em segundos a ponte da história entre a espécie Homo sapiens/demens e os raros membros da nova comunidade Homo eletronicus...Com certo nível de Qualidade perceptiva...
...Em condições mentais de fazer valer a luta em prol do paradigma de um novo modo de ser da sociedade governada por outro padrão semântico, linguístico (“No Princípio Era O Verbo”) criado a partir das trocas e descobertas de fluidos e ideias que somente podem surgir de uma convivência longe das influências que te levaram a levantar os braços no grande pátio do “Rock Na 3ª Margem Do Rio”.
...Talvez agora, quem sabe (?) você tenha ganhado a compreensão do sentido pertinente da poesia em pauta, e possa forçar sua saída imediata do ventre da mãe História sapiens/demens e de suas colheitas intermináveis do fluxo vital de gerações e gerações aos milhares geridas pela instintividade de uma vontade histórica materna dedicada a te manter acorrentada aos padrões e paradigmas de avoengos hominídeos. Os mais antigos. Este parto, minha cara, rara leitora, precisa ser autóctone. E muito! Muito difícil.
Quem sabe sua filha, seu filho, venham a aceitar o desafio de caminhar pela areia solar das praias, a mochila nos ombros como um ativo símbolo de liberdade e fazer valer seu período de vida atual, mesmo que se arrisque a ter por companhia, como diria a Clarice Lispector, “minha solidão. Eu tenho a coragem de me enfrentar. Que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo”.
Tenho certeza de que você está sabendo por que o Dinho Ouro Preto dedicou à oligarquia de José Romão Sarney a composição do Renato Russo: “Que País É Esse”?
— Que País É Este?