Arraial do Tijuco, 27 de agosto de 1.756.
Minha querida filha Helena,
Que esta a encontre em melhor saúde. Mando esta carta porque os últimos dias têm sido difíceis e passamos a maior parte do tempo junto de sua madrinha Francisca e de Quitéria. Foi um infortúnio, uma verdadeira desgraça que se abateu sobre nossa família. Vosmecê já deve saber que o marido de Quitéria está preso. Estamos todos ainda inconformados com o ocorrido, sua madrinha Francisca está inconsolável, viúva, com muitos filhos e uma filha casada com o assassino do próprio pai... Pelo menos os irmãos mais velhos de Quitéria são homens honrados de nossa sociedade e têm cuidado de tudo. Além dos filhos homens, sua madrinha Francisca jamais estará desamparada porque tem a nós, graças a Deus...
Seu pai concluiu que sendo ele o homem mais velho e respeitado de nossa família, nesse momento, sua ausência poderia ser mal vista e por isso enviou seu irmão Dilermando para consultar o Bispado em Mariana sobre a possibilidade de anular o casamento de Quitéria. Segundo informações do Padre Eurico, a Igreja pode aceitar o pedido de anulação do casamento, pois há diversas testemunhas do assassinato de seu tio Abílio pelo Antônio Sá e da rudeza com que ele tratava Quitéria, embora jamais um casamento tenha sido anulado por este motivo.
Tenho agradecido a Deus todos os dias, porque talvez Bastiana tivesse se casado com o Antônio Torres de Sá Filho. Já não sei mais qual desgraça é maior... Graças a Deus, vosmecê está casada com um homem digno e educado, apesar de tudo... A pobre Quitéria, machucada e triste, não diz palavra. Viveu um casamento fementido1, enquanto o Antônio Sá conseguiu intrujar2 a todos. Por vergonha e medo, Quitéria não contou a ninguém o que se passava em sua casa. Pobre rapariga3! Vive pelos cantos com o olhar fixo e cabisbaixo, as lágrimas já secaram e ela, com toda sua mocidade, parece uma avó de quarenta anos, em meio a soluços e a aparência maltratada... Está magra como nunca e muito pálida, pois assim que ela voltou para sua casa – dias depois que o umbigo de Francisquinha caiu, o tal Antônio Sá deixou-a uma semana sem comer, nem beber nada, nem água, além das surras diárias que levava. Suas escravas, aterrorizadas e muito castigadas, não se atreveram a desobedecer a ordem de seu senhor, mas uma delas conseguiu avisar seu tio para ir visitar Quitéria. E foi então que tudo aconteceu. Oh, Deus! Seu padrinho Abílio não tinha ideia do quanto este homem era violento. Encontrou a filha muito machucada, com o rosto inchado, cheio de hematomas, sem conseguir andar direito e foi tirar satisfações com o tal Antônio, pois não tinha criado filha mulher honrada para ser esbordoada4 por homem nenhum. Encontrou-o no bordel da cidade, perto do engenho, bêbado, e o homem não teve piedade: atirou mortalmente no próprio sogro. Mesmo bêbado, conseguiu fugir, mas não foi muito longe: o Capitão-Mor prendeu-o na tarde do dia seguinte. Parece que será condenado à forca, mas tememos a influência de sua família junto à Corte, em Portugal. Felizmente temos o apoio do Contratador João Fernandes e esperamos que El Rey apóie sua decisão...
Sua madrinha Francisca, inconformada, chora todos os dias. Francisquinha fica todo o tempo com sua ama-de-leite e a comadre nem a vê... Quitéria, em seu estado lastimável, segredou-me que sente vergonha de todos. Disse a ela que sua sogra e o resto da família do Antônio Sá é que não têm tido coragem de aparecer no arraial – foram para Serro do Frio5 – e que ela e sua família têm o respeito e a piedade de todos. Não foi escolha dela o casamento com o Antônio Sá e, infelizmente, seu tio Abílio pagou por isso com a própria vida. Tenho muita pena de Francisquinha que crescerá sem pai, um pai tão bom e tão amoroso, como foi para Quitéria...
Ainda assim, não se preocupe, minha filha, porque elas entendem sua situação e estamos dando todo esteio6 necessário. Vosmecê conhece bem sua madrinha Francisca e sabe que em pouco tempo ela se recuperará de toda essa desgraça e voltará a encher nossas vidas com seu sorriso ledo7 e seu jeito palreiro8. Mantenha-se em seu repouso, mas se puder, escreva para Quitéria. Ela precisa muito compreender que não tem culpa do ocorrido, de que é jovem e que agora está de volta junto à sua família e que o assassino de seu pai terá o castigo que merece e passará a eternidade queimando no fogo do inferno.
Reze o terço e peça proteção a Nossa Senhora do Rosário. Seu irmão Agostinho escreve esta carta e manda lembranças a vosmecê e a seu marido, José.
Fique com o bom Deus, nosso Pai e que Ele te abençoe.
Sua mãe,
Maria Joaquina Pereira Gonçalves
1 Fementido – enganoso, ilusivo, ilusórioMinha querida filha Helena,
Que esta a encontre em melhor saúde. Mando esta carta porque os últimos dias têm sido difíceis e passamos a maior parte do tempo junto de sua madrinha Francisca e de Quitéria. Foi um infortúnio, uma verdadeira desgraça que se abateu sobre nossa família. Vosmecê já deve saber que o marido de Quitéria está preso. Estamos todos ainda inconformados com o ocorrido, sua madrinha Francisca está inconsolável, viúva, com muitos filhos e uma filha casada com o assassino do próprio pai... Pelo menos os irmãos mais velhos de Quitéria são homens honrados de nossa sociedade e têm cuidado de tudo. Além dos filhos homens, sua madrinha Francisca jamais estará desamparada porque tem a nós, graças a Deus...
Seu pai concluiu que sendo ele o homem mais velho e respeitado de nossa família, nesse momento, sua ausência poderia ser mal vista e por isso enviou seu irmão Dilermando para consultar o Bispado em Mariana sobre a possibilidade de anular o casamento de Quitéria. Segundo informações do Padre Eurico, a Igreja pode aceitar o pedido de anulação do casamento, pois há diversas testemunhas do assassinato de seu tio Abílio pelo Antônio Sá e da rudeza com que ele tratava Quitéria, embora jamais um casamento tenha sido anulado por este motivo.
Tenho agradecido a Deus todos os dias, porque talvez Bastiana tivesse se casado com o Antônio Torres de Sá Filho. Já não sei mais qual desgraça é maior... Graças a Deus, vosmecê está casada com um homem digno e educado, apesar de tudo... A pobre Quitéria, machucada e triste, não diz palavra. Viveu um casamento fementido1, enquanto o Antônio Sá conseguiu intrujar2 a todos. Por vergonha e medo, Quitéria não contou a ninguém o que se passava em sua casa. Pobre rapariga3! Vive pelos cantos com o olhar fixo e cabisbaixo, as lágrimas já secaram e ela, com toda sua mocidade, parece uma avó de quarenta anos, em meio a soluços e a aparência maltratada... Está magra como nunca e muito pálida, pois assim que ela voltou para sua casa – dias depois que o umbigo de Francisquinha caiu, o tal Antônio Sá deixou-a uma semana sem comer, nem beber nada, nem água, além das surras diárias que levava. Suas escravas, aterrorizadas e muito castigadas, não se atreveram a desobedecer a ordem de seu senhor, mas uma delas conseguiu avisar seu tio para ir visitar Quitéria. E foi então que tudo aconteceu. Oh, Deus! Seu padrinho Abílio não tinha ideia do quanto este homem era violento. Encontrou a filha muito machucada, com o rosto inchado, cheio de hematomas, sem conseguir andar direito e foi tirar satisfações com o tal Antônio, pois não tinha criado filha mulher honrada para ser esbordoada4 por homem nenhum. Encontrou-o no bordel da cidade, perto do engenho, bêbado, e o homem não teve piedade: atirou mortalmente no próprio sogro. Mesmo bêbado, conseguiu fugir, mas não foi muito longe: o Capitão-Mor prendeu-o na tarde do dia seguinte. Parece que será condenado à forca, mas tememos a influência de sua família junto à Corte, em Portugal. Felizmente temos o apoio do Contratador João Fernandes e esperamos que El Rey apóie sua decisão...
Sua madrinha Francisca, inconformada, chora todos os dias. Francisquinha fica todo o tempo com sua ama-de-leite e a comadre nem a vê... Quitéria, em seu estado lastimável, segredou-me que sente vergonha de todos. Disse a ela que sua sogra e o resto da família do Antônio Sá é que não têm tido coragem de aparecer no arraial – foram para Serro do Frio5 – e que ela e sua família têm o respeito e a piedade de todos. Não foi escolha dela o casamento com o Antônio Sá e, infelizmente, seu tio Abílio pagou por isso com a própria vida. Tenho muita pena de Francisquinha que crescerá sem pai, um pai tão bom e tão amoroso, como foi para Quitéria...
Ainda assim, não se preocupe, minha filha, porque elas entendem sua situação e estamos dando todo esteio6 necessário. Vosmecê conhece bem sua madrinha Francisca e sabe que em pouco tempo ela se recuperará de toda essa desgraça e voltará a encher nossas vidas com seu sorriso ledo7 e seu jeito palreiro8. Mantenha-se em seu repouso, mas se puder, escreva para Quitéria. Ela precisa muito compreender que não tem culpa do ocorrido, de que é jovem e que agora está de volta junto à sua família e que o assassino de seu pai terá o castigo que merece e passará a eternidade queimando no fogo do inferno.
Reze o terço e peça proteção a Nossa Senhora do Rosário. Seu irmão Agostinho escreve esta carta e manda lembranças a vosmecê e a seu marido, José.
Fique com o bom Deus, nosso Pai e que Ele te abençoe.
Sua mãe,
Maria Joaquina Pereira Gonçalves
2 Intrujar – enganar, explorar
3 Rapariga – menina, moça
4 Esbordoar – espancar
5 Serro do Frio – atual cidade do Serro, MG
6 Esteio – apoio
7 Ledo – risonho, alegre, contente, jubiloso
8 Palreiro – falador, conversador