Marco-Zero
Como sempre, o mesmo fundo branco, o mesmo ar nevoento, o mesmo zumbido ininterrupto. O céu cinza-escuro, uma lua partida ao meio e marte derramando sangue pelo horizonte. Na mesma parede coberta de musgo e cal, eu me escoro. Sobre o mesmo chão de ladrilhos vermelhos eu me arrasto. A mesma arvore balança ao vento soltando folhas sobre mim. O mesmo prego ferrugento cravado no seu tronco, a seiva escorrendo do mesmo jeito.
O mesmo latido dos cachorros, a mesma sinfonia. O mesmo perfume, o mesmo gosto...
A mesma dificuldade em descrevê-lo. A mesma sensação de língua queimada. O mesmo formigamento subindo dos meus pés à raiz dos meus cabelos. Você na minha frente, do mesmo jeito. O mesmo olhar de morte, o mesmo rancor. Todas as noites, seguindo os mesmos passos, você rompe uma carapaça, sai de sua pupa e devora meu coração. Você criou asas, aprendeu a voar, separou nossos mundos traçando a divisória com giz e sangue. Todas as noites você vem aos meus sonhos. Todos as noites você me mata sem derramar uma lágrima, fria, sem medo, sem dor. Não me impressiono mais, não sofro mais. Você não me quer, no entanto sempre retorna. Você se tornou meu marco-zero. Meu ponto de referência, o ponto de partida de uma jornada para me tornar seja lá o que me tornarei. Ironicamente, parece que é o mesmo para você. Por isso, toda noite, retornamos ao ponto final do nosso conto, e início do resto de nossas vidas. Você vem ao meu sonho, e me pergunto com que freqüência eu estou nos seus. Não importa. Não mais. Eu sou o que sou e você está se tornando o que deveria ser.
Ainda são seus, carne, osso e sentimento
Cada batida do meu peito
Cada lágrima que lancei ao vento.
Ainda sinto, o calor de tuas coxas
E mesmo quando com outras
É com você que eu me deito.