New York, 30 de abril de 1994

Hi, Adolph,

Fiquei surpreso em receber sua carta. Mais ainda, em saber que, depois de todo o mal que você causou aos judeus, ao povo alemão e ao resto do mundo, você está aí, vivendo muito bem, gozando da hospitalidade do povo argentino e não devidamente morto, como dizem nossos livros de história. Ardendo no fogo do inferno como todo suicida, para catarse de nossas angústias por seus crimes contra a humanidade.

Entenda. Por mais conciliatório que possa ter sido o tom escolhido por você, é difícil ignorar que, de todas as personalidades que marcaram o século XX, nenhuma foi tão nociva, nenhuma foi capaz de tanta destruição e, certamente, nenhuma jamais o fez por razões tão fúteis.

Concordo com seu argumento sobre ser injusto julgá-lo sem observar as diferenças dos meios em que vivemos. Você tem razão quando diz que o mundo evoluiu muito desde a sua ascensão ao poder na Alemanha. De fato, hoje, excetuando-se alguns povos ainda muito atrasados, busca-se a igualdade de direitos entre todos os seres humanos, independente de sua classe social, raça, credo, gênero ou opção sexual. Mais recentemente, observa-se até o crescimento do combate ao especismo, visando equiparar animais humanos aos não humanos sencientes.

Talvez na sua época, fizessem algum sentido o seu anti-semitismo e sua estúpida crença numa supremacia ariana, do mesmo modo como era natural, até o final do século XIX que os negros fossem tratados como mercadoria por senhores de escravos.

Todavia, cumpre ressaltar que época nunca foi determinante de caráter ou índole. Mesmo na Roma, Grécia ou Egito antigos, milênios atrás, havia senhores que tratavam bem os seus servos, por reconhecerem neles qualidades que os tornavam iguais. Senão na condição social, ao menos, na humana.

Quanto a você, lamentavelmente suas idéias de superioridade racial constituíam-se num notório retrocesso e a história mostrou que muitos dos seus contemporâneos que se opuseram ao nazismo, o fizeram justamente por discordarem delas, visivelmente mais motivadas pelo rancor derivado de seus fracassos acadêmicos do que por um sincero pangermanismo.

Por outro lado, sou obrigado a reconhecer seus méritos, sem os quais, você jamais chegaria onde chegou. Apesar do raciocínio torto, são notáveis a sua inteligência e o seu magnetismo pessoal. Até hoje há quem tente imitar a sua capacidade de manipular as massas, dando a elas exatamente aquilo que você as fez acreditar serem seus maiores anseios. Sua perseverança e pragmatismo também são dignos de louvor. Porém, convenhamos: é poder demais para alguém de mente tão pequena e influenciável, que por ordem do pai, abriu mão de realizar o sonho de ser artista e por influência de um velho professor retrógrado encampou essa luta em defesa de uma Alemanha poderosa e xenofóbica.

No final das contas, tudo o que você conseguiu foi dividir o mundo e mergulhá-lo numa guerra sem sentido, com o perdão do pleonasmo. Sua insana mania de grandeza provocou a morte de cerca de sessenta milhões de pessoas, incluindo civis: mulheres, idosos, crianças, ciganos, homossexuais e todas as outras minorias que tiveram a infelicidade de cruzar o seu caminho.

Felizmente sua vergonhosa derrota em 1945 pôs fim a essa loucura e nos recolocou nas rodas da história. Outras guerras se deram, de maior ou menor monta, outros líderes do mal surgiram como laranjas podres a estragar todas as outras à sua volta. Mas no geral, penso que crescemos e continuamos crescendo.

Fico feliz em perceber que, daí de seu esconderijo, tenha conseguido observar todas as mudanças ocorridas desde seu desaparecimento e que você tenha aprendido e evoluído com o resto do mundo. Fiquei particularmente emocionado com a sua informação de que entende o quão desastrosa foi sua passagem pelo planeta e que, agora, você consegue reconhecer seus erros, estando mesmo disposto a repará-los. Lembro, no entanto, que será impossível restituir todas as vidas perdidas por sua loucura, mas já é um alento o simples fato de querer que sua mensagem seja usada para que nunca mais um único homem seja capaz de tamanha destruição. Que não sejam apenas falácias, é o que espero!

Apenas alerto que, faça o que fizer, nada lhe dará o direito de dar palpites em meu livro. Foram anos de estudo para produzir este cenário. Minha primeira idéia de como seria o mundo, caso os nazistas vencessem a guerra era uma grande Índia com seus sistemas de castas. Desisti, perante a constatação de que a fé como agente determinante provoca submissão, convoca a uma aceitação tácita das condições de vida impostas pelas classes sociais. Deste modo, julguei mais adequado o modelo Sul Africano e seus apartheids, que compreende um pouco mais de inconformismo e onde revoltosos estarão sempre se movimentando, em busca de mais direitos e igualdade. É assim que eu imaginei que o mundo seria sob o seu jogo.

Com todo o respeito, se você não gostou, escreva outro melhor.

Atenciosamente,

Robert Harris


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Texto escrito para o 7° Desafio Literário da Câmara dos Deputados
Categoria Cartas - Etapa 4.
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