Querida Mãezinha,

Saudades...da Senhora...:)


"A letra do ó"...ouvi essa expressão ontem, o meu coração vibrou...pareceu-me ouvir a tua voz..."Não vai ser como a tua mãe, que não sabe a letra do "ó"...

De todas as minhas lembranças, nenhuma é mais viva do que aquela em que a acompanhei em uma das muitas faxinas que a senhora fazia para defender o pão com o qual matou a nossa fome.

Menina, ainda, naquele dia, cresci...

A casa que a senhora tinha que limpar era enorme, dois andares, e só aquele dia para deixá-la um brinco...como costumava me ensinar...

Mãe, a senhora pode não acreditar, mas eu ficava muito feliz por te acompanhar nas tuas faxinas, por poder ajudá-la, pois, mesmo menina, entendia o teu pesado fardo; sonhava pra senhora vida melhor...

Ah, mãezinha, a senhora não tem ideia do que foi para mim descobrir que o lugar reservado para o teu almoço, naquela casa, era na área de serviço, no quintal...

Li a tristeza no teu olhar quando a senhora leu, no meu, a minha incompreensão...
A humilhação atingiu-me como ferro em brasa...doeu, como só o inferno deve doer ...
A senhora leu isso em mim, conhecia-me como ninguém jamais conheceu...

Lembro-me bem, que atenta em mim, a senhora sorriu-se...Hoje, penso que o teu sorriso deve ter sido porquê a senhora soube, desde então, que a tua história não se repetiria em mim...

Ah, Dona Generosa, o teu nome sempre espelhou o teu coração, a senhora voltou-se e me disse as palavras que me salvaram de mim mesma..."A tua mãe vai comer aqui, no quintal, porque ela não sabe a letra do "ó" , porque não aprendeu a ler nem a escrever, quem não sabe ler nem escrever, está morto pra este mundo de meu Deus..."

As tuas palavras, minha mãe, despertaram os meus sentidos, tive sede e fome de saber....

Danei a estudar...assim, como a senhora costumava repetir...
Lembro-me, feliz, de todas as tuas alegrias, quando, nas reuniões da escola, não sabendo ler, compreendias a nota "100", contada pelos Professores.

A senhora saía pelos corredores e ,sempre, com a tua voz forte e alegre, dizias ao céu aberto e para descrentes que pudessem ouvir, de que eu, a tua filha, seria uma "adevogada"... eu me ria de você, arreliava-a:..."advogada" ,corrigia-a, ao que você retrucava "tá metida a besta...quem te ensinou a falar?".

Mãe, querida, quanto orgulho eu tenho da senhora.
Ninguém neste mundo conheceu mãe como a minha, nenhuma força conheço semelhante a tua..

Ah...minha mãe, a senhora tinhas toda a razão; conhecias-me, mais do que eu mesma conhecia a mim...

Danei a estudar..., aprendi a letra do "ó",...

Chamam-me pelo meu nome...

O teu sonho realizou-se; formei-me em Direito... o tal curso que fazem aqueles que querem ser Advogados...

Sim, minha mãe, algumas pessoas, além do meu nome, chamam-me, respeitosamente, "Doutora", tal qual o teu coração desejou...

Ontem, em um desses meus trabalhos, no exercício desta minha profissão, encontrei um senhor, nordestino, como nós, pele curtida pelo sol, sorriso aberto...perguntei a ele se ele sabia assinar o próprio nome...ele levantou-me o olhar encabulado:

- "Não, não senhora, eu não sei a letra do "ó"...


Que saudades da senhora, minha mãe,


Dê-me a tua benção!


Angela...:)


(Há vinte e um anos, no dia 04 de agosto, minha mãe deixou de estar comigo fisicamente...Republico esse texto, para que ela possa "se gabar" dele, lá no céu). rs.