CARTA ABERTA AOS MEUS AMIGOS
Amigos queridos: não desejo para ninguém um tempo como o que atravesso há muito, já. Um tempo sem rosto, um tempo de pensamentos, palavras, silêncios e gestos exaustos, sempre a viverem o mesmo, a falarem do mesmo, dos sonhos impossíveis a qualquer real; do trabalho que já não há, da família de pouca solidariedade, dos joelhos tão frágeis; do amor que, presa de êxtases em planos indizíveis, no seu tempo da mais funda plenitude, não tem nem teve nem terá qualquer direito a presença efetiva no chamado mundo real; amor que não tem direito a palavras que revelem seu próprio nome com todas as letras, nem direito a palavras claras que lhe desfaçam os equívocos de ambos os lados, os equívocos espantosos cometidos e sofridos ao longo dos anos; amor que, por outro lado, não tem o direito de esquecer, nem o direito de partir. que quadro alucinante, de insolúveis paradoxos o diz, desde sempre, ao rosto de tal amor!; amor que não sabe como transmutar-se, efetivamente, em amizade, para ter o direito de viver no comum dos dias, de expor-se um rosto natural; tempo sem fim de corpo em sempre castidade obrigatória, de fé que oscila o tempo todo entre o SIM, o NÃO e, principalmente, o TALVEZ.
Eu me afastei de tudo e de quase todos; eu estou, há muito, espécie de monja em clausura. Talvez, quando me seja facultado voltar (se me for facultado voltar) ao mundo, não encontre ninguém mais à minha espera, talvez não encontre mais ninguém.
Só escrevo para lhes dizer, amigos, que, mesmo que não me acreditem, lhes permaneço fiel. Decerto já não me pareço com aquela que vocês conheceram um dia, uma pessoa que tinha alegria, confiança, que repartia sua voz, seu canto, sua palavra, suas esperanças como se repartisse o pão de si mesma. Hoje há marcas dolorosas, cicatrizes que qualquer leve arranhão reabre e as faz de novo sangrar, tais cicatrizes, desde que descobri, há muito, ter causado demasiado mal à vida de algumas pessoas, já pelo fato de existir; de descobrir também que meu destino importa pouco para o único ser no mundo que teria o real dever de me apoiar com, pelo menos e, no mínimo, alguma compreensão ou tentativa de compreensão das necessidades minhas mais fundas e dos deveres meus para comigo mesma, deveres que as circunstâncias me impedem de cumprir. Ao longo de muitos anos, nem silêncio nem palavra minha tem levado este ser a adquirir consciência efetiva de mim, do que eu realmente sou e de tudo do que tenho abdicado de mim. Algumas pessoas me fazem sentir como se eu fosse uma criminosa; ainda bem que o afeto de outras, principalmente das minhas sagradas amigas, tem permanecido, explícito sempre, ao meu lado. Não sei de crimes efetivos meus, mas sei e como, de erros graves, de omissões, de fracassos, de renúncias... de culpas, que me parecem, muitas vezes, todas irreparáveis, por mais que eu viva a tentar repará-las, na medida do possível e do que me é lícito.
Estou escrevendo tudo isso não sei bem por quê. Talvez por hoje estar particularmente aflita, já que há uma amiga querida ( sei que há vários mais amigos também a sentir o mesmo) que não se conforma com o meu silêncio e ontem me ‘assediou’ deveras. Ela é muito jovem e não pode, graças a Deus, compreender o que é sentir em si a falência do próprio ser e da própria vida pessoal, a falência da coragem e da vontade, o ter que guardar para si segredos de Outra Natureza, segredos que nem psicanalistas nem psiquiatras poderiam efetivamente compreender e, por esta razão, me poderiam imputar o título de louca sem remissão ou então eu teria que passar, de novo, pela experiência de ser recusada para tratamento porque "como alguém com uma linguagem tão articulada pode estar tão desarticulada quanto se diz?" Parece incrível, mas isso já tive que ouvir, de um especialista. Alguém poderia sugerir: "Por que você não tenta um tratamento espiritual?" Se alguém sugerir tal, até lhe dou razão, mas, também resisto a isto, este é um dos temas dos quais não consigo nem posso falar, entre outras razões, porque tal poderia implicar em invasão da privacidade, mesmo do destino espiritual de outras pessoas. Aí, dirão: "Neste caso, o seu presente ‘discurso’ é um discurso sem saída, só de impasses. Se é assim, por que fazê-lo?" Quem assim pensar, tem toda razão. Realmente, se faço esse discurso ‘fechado’ a quaisquer possibilidades e conselhos, por que fazê-lo? Talvez para repartir-me, na alguma lucidez que ainda me resta; talvez apenas por isso e isso já é muito. Talvez para pedir a alguém, uma prece por mim. De todo modo, peço desculpas e paciência a quem me esteja lendo, por esta ‘exorbitância’ de confidências. Se servir de espelho para pessoa em estado de angústia similar, tal texto terá servido para alguma coisa, terá, ao menos, alguma utilidade prática, alguma função que a legitime.
É parar por aqui que, em verdade, ninguém, amigos nem conhecidos têm que perder tempo lendo estas coisas. Deve haver algum caminho escondido entre os escombros, ou no fundo do meu mar, ou em alguma estrela a persistir, invisível, em algum céu de mim: uma estrela que me presida, que nos presida o renascimento, a ressurreição, ainda nesta presente vida.
Escrito "de primeira", na noite de 18 de outubro de 2010.
Republicado, com algumas alterações não substanciais, na manhã de 29 de julho de 2011, embora eu preferisse, no mais fundo de mim, que as circunstâncias tivessem mudado, tivessem tornado este texto obsoleto o que, infelizmente, ainda não ocorreu, em setor nenhum da vida, também por uma espécie de ‘paralisia existencial’. Infelizmente.