O CORAÇÃO FALA
Maria, amada! Desde que comecei a escrever, lá por 1967, e, depois mais fortemente, a partir de 1977, ao me filiar à Casa do Poeta Rio-Grandense (que foi um marco importante na minha vida), percebo que o Inverno é a minha estação da criação. Os “alter egos” tomam conta e me fazem documentar, enfim, o “fazer criando”, que é o significado do vocábulo Poesia... Ainda mais agora, que já tenho alguma prática também na prosa. É compreensível o entorno circunstancial: estou sozinho (minha mulher está no Passo de Torres) e eu estou aqui na capital, metido dentro de casa, só saindo pra visitar o meu amigo poeta de 76 anos, que continua baixado ao Hospital Ernesto Dornelles. Somente nesta semana é que conseguirá ter condições de ser operado. Hoje saí um pouco e fui ao hospital ver o estimado doente. Também estive na casa do Dr. José Moreira da Silva, presidente da Academia Literária Gaúcha - ALGA, da qual sou o vice. Fora disso, o que fazer com esse frio que geme nas janelas? Resume-se a ficar em casa, ler, criar e tomar um vinho de quando em vez. Quanto ao texto, em http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/3059378,
de que falas, e que classifiquei inicialmente, no RL como "carta", depois corrigido, aquela "musa" é fantasia pura, como convém a um escritor não mais diletante e não mero autor de recadinhos amorosos, que é que se vê a todo o tempo, na net. Como já te disse, são figuras diferenciadas, um é o autor, o outro é o personagem. Um é o esqueleto, o outro é a musculatura que vai produzir a queima dos neurônios. O leitor nunca sabe quando é um ou o outro... Dependendo da fixação do leitor, de suas diatribes pessoais, de seus desamores, ele entra no texto e faz o “intertexto”, viagem fantástica a partir da proposta, mormente se o texto tem uma vertente amorosa e propõe o emocional. E, se o receptor é mulher, então logo se identifica e quer saber quem é a Musa... E por aí vão os sonhos, “amassos”, beijos, cama, gozo, situações não bem resolvidas no coração feminino e em alguns homens. Também nos homossexuais, que têm sensibilidade muito similar ao coração de mulher. Admiro essa capacidade imanente aos mais sensíveis. Quanto à mocinha de 1981, quando fui jurado em Três de Maio, no Festival Estudantil de Música local, não a vejo desde 1983. Nunca mais. Não permanece na memória com o ardente poder de "Musa". Impossível. Aquela era real, palpável, flor de meus 40 anos. Porém, escafedeu-se materialmente e ficou numa dedicatória de livro, aliás, de um único poema no livro "Canção da Amada", que nunca editei porque era um derramamento sentimental, e que pouco tinha de Poesia, somente o amor frustro escorrendo em cada página. Coisa de homem, não de escritor. Lembras? "O poeta é um fingidor...". Entendo quando gostas de minhas prosas poéticas. E fico muito feliz como autor. Entendo e compreendo quando tu dizes que na minha poesia "os textos são mais secos, mais curtos, enquanto que nas mensagens e prosas poéticas deixo a ternura, a carícia do coração falar.". É que essa não é a linguagem que o teu coração deseja ver e construir o mistério sutil que a Poesia propõe... Quer, sim, os detalhes dos possíveis amores que deram origem ao texto, ao poema. Bem coisa do espírito feminino, em que tudo tem de conter uma história de amor (e real), se não, nada tem graça... O meu poema é seco, curto, porque o poema da contemporaneidade exige: é linguagem enxuta, não derramada – sugere, mas não é. Não tem provável historieta por debaixo das palavras, porque se não, eu estaria a fazer Prosa, nunca Poesia. Porque um poema com Poesia é um fetiche, o mistério da viagem dentro da cabeça do leitor afeito ao mistério, ao sonho, e nunca à historieta do mundo real. Diz o mestre Fernando Pessoa: "sinta quem lê". Fico com ele, que tão bem interpretou o tema, e em Poesia. Ao autor não cabe emocionalidades, e, sim a proposição do emocional para que o leitor o frua, o sinta, o possua com encantamento e, se possível, com a dor que ele, poeta, não teve em nenhum momento. Bem, quanto ao "escrever mais bonito e melhor na prosa", não posso opinar. É o teu juízo estético e este é próprio de tua pessoa, como receptora... Enfim, o que seria do verde se todos gostassem do amarelo? Mas, por certo, em tudo o que se escreve, o coração fala. Por vezes, mais contido, por outras, mais esparramado. E mais: o pensar é fruto de estímulos elétricos, diz a ciência. Às vezes, ocorrem circuitos elétricos e não se estabelece a devida conexão. Todavia, algo me parece correto e real: pensar dói!
– Do livro NO VENTRE DA PALAVRA, 2011.
http://www.recantodasletras.com.br/cartas/3073847