Arraial do Tijuco, 2 de agosto de 1.756.
Minha devotada esposa Helena,
Espero que esta carta a encontre sã e na paz de Deus, nosso Pai. Chegamos ontem em Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii1 debaixo de forte chuva. Aqui as matas são exuberantes, deixando a paisagem marítima ainda mais bela. Além disso, apesar da chuva, o tempo é quente e os incômodos são maiores. Amanhã mesmo o Contratador João Fernandes e eu vamos negociar um lote valioso de diamantes com um enviado da Coroa. Pedi ao Contratador para fazermos todo o necessário o mais rapidamente possível, pois não quero me afastar de vosmecê por muito tempo. Além disso, o Contratador também não quer ficar muito tempo fora, já que Dona Chica da Silva está de resguardo do João Fernandes Filho. E nós dois, será que teremos um menino também?
Esperamos concluir as negociações dos diamantes amanhã mesmo. Ficaremos aqui mais dous dias, pois o Contratador quer visitar alguns maganos2 da região, com o intuito de comprar novos escravos e escravas para Dona Chica. Partiremos domingo depois da missa e chegaremos ao Tijuco em quinze dias. Peço que reze para que tudo transcorra bem em nossa viagem, como foi na ida, mesmo com nossa valiosa carga.
Não queria escrever-lhe esta carta, Helena, porque sei que espera melhores notícias de Bastiana. Mas o Contratador convenceu-me a escrevê-la, com o argumento de que sua curiosidade e aflição poderiam ser prejudiciais ao neném. Convenceu-me facilmente, já que sua gravidez não tem sido fácil e eu não quero ver vosmecê doente. Também acredito que apesar das notícias não serem exatamente boas, vosmecê poderá ficar mais sossegada.
Soube que Bastiana deixou o jovem visto pelo homem do Contratador. Soube também que ela é a mulher-dama mais procurada no porto da cidade, pois é mulher de bons modos, jovem, sabe ler e escrever. Fui ter com Bastiana e, surpreso, constatei que ela sente-se feliz e realizada. Quanto mais eu vivo, menos compreendo o que vai n’alma das pessoas... Conversei um pouco com ela e contei-lhe de toda a aflição da família, principalmente sua e de Dona Joaquina. Bastiana disse que seu destino é ser livre como um pássaro, que ela não suportaria outra vida e que não temos que nos preocupar com ela. Doeu-me no coração, Helena, porque infelizmente, constatei o que seu pai havia dito: Bastiana não passa de uma rascoa3. É uma vida humilhante, suja... Contei-lhe que teremos um filho e que sua gravidez tem sido muito difícil, que vosmecê passa a maior parte do tempo repousando. Ela pareceu-me preocupada, mas não disse palavra. Creio que daqui pra frente vosmecê pode ficar mais sossegada em saber que sua irmã vive exatamente como ela quer, não está intrujando4 ninguém.
Como vosmecê amorosamente me pediu, pensei a respeito da prenhez de Marvina. Não sei dizer não a vosmecê, minha adorada esposa, de modo que atenderei seu pedido: não venderei o filho de Marvina. Ela será a ama de leite de nosso filho e ficará com o dela, mas se nosso filho não for suficientemente corado e gordo, venderei o negrinho sem delongas.
Espero que goste da alfaia5 que lhe envio. Combina com vosmecê, delicada e bela.
Mantenha o repouso, conforme as recomendações do Dr. Manoel Lopes. Quando voltar, quero ver vosmecê corada e gorda, conservando boa saúde para nosso filho.
Mande lembranças a seus pais e à minha boa mãe que tem ficado com vosmecê todos estes dias que estou fora.
Todo seu,
José de Arimatéia Soares.
1 Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii – atual Parati (RJ)
2 Maganão ou magano – mercador de escravos que enfeitava os negros para agradar os compradores
3 Rascoa – meretriz
4 Intrujar – enganar, explorar
5 Alfaia – utensílio de adorno doméstico ou pessoal
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CARTAS DE HELENA X - ALGUNS CONSELHOS
Minha devotada esposa Helena,
Espero que esta carta a encontre sã e na paz de Deus, nosso Pai. Chegamos ontem em Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii1 debaixo de forte chuva. Aqui as matas são exuberantes, deixando a paisagem marítima ainda mais bela. Além disso, apesar da chuva, o tempo é quente e os incômodos são maiores. Amanhã mesmo o Contratador João Fernandes e eu vamos negociar um lote valioso de diamantes com um enviado da Coroa. Pedi ao Contratador para fazermos todo o necessário o mais rapidamente possível, pois não quero me afastar de vosmecê por muito tempo. Além disso, o Contratador também não quer ficar muito tempo fora, já que Dona Chica da Silva está de resguardo do João Fernandes Filho. E nós dois, será que teremos um menino também?
Esperamos concluir as negociações dos diamantes amanhã mesmo. Ficaremos aqui mais dous dias, pois o Contratador quer visitar alguns maganos2 da região, com o intuito de comprar novos escravos e escravas para Dona Chica. Partiremos domingo depois da missa e chegaremos ao Tijuco em quinze dias. Peço que reze para que tudo transcorra bem em nossa viagem, como foi na ida, mesmo com nossa valiosa carga.
Não queria escrever-lhe esta carta, Helena, porque sei que espera melhores notícias de Bastiana. Mas o Contratador convenceu-me a escrevê-la, com o argumento de que sua curiosidade e aflição poderiam ser prejudiciais ao neném. Convenceu-me facilmente, já que sua gravidez não tem sido fácil e eu não quero ver vosmecê doente. Também acredito que apesar das notícias não serem exatamente boas, vosmecê poderá ficar mais sossegada.
Soube que Bastiana deixou o jovem visto pelo homem do Contratador. Soube também que ela é a mulher-dama mais procurada no porto da cidade, pois é mulher de bons modos, jovem, sabe ler e escrever. Fui ter com Bastiana e, surpreso, constatei que ela sente-se feliz e realizada. Quanto mais eu vivo, menos compreendo o que vai n’alma das pessoas... Conversei um pouco com ela e contei-lhe de toda a aflição da família, principalmente sua e de Dona Joaquina. Bastiana disse que seu destino é ser livre como um pássaro, que ela não suportaria outra vida e que não temos que nos preocupar com ela. Doeu-me no coração, Helena, porque infelizmente, constatei o que seu pai havia dito: Bastiana não passa de uma rascoa3. É uma vida humilhante, suja... Contei-lhe que teremos um filho e que sua gravidez tem sido muito difícil, que vosmecê passa a maior parte do tempo repousando. Ela pareceu-me preocupada, mas não disse palavra. Creio que daqui pra frente vosmecê pode ficar mais sossegada em saber que sua irmã vive exatamente como ela quer, não está intrujando4 ninguém.
Como vosmecê amorosamente me pediu, pensei a respeito da prenhez de Marvina. Não sei dizer não a vosmecê, minha adorada esposa, de modo que atenderei seu pedido: não venderei o filho de Marvina. Ela será a ama de leite de nosso filho e ficará com o dela, mas se nosso filho não for suficientemente corado e gordo, venderei o negrinho sem delongas.
Espero que goste da alfaia5 que lhe envio. Combina com vosmecê, delicada e bela.
Mantenha o repouso, conforme as recomendações do Dr. Manoel Lopes. Quando voltar, quero ver vosmecê corada e gorda, conservando boa saúde para nosso filho.
Mande lembranças a seus pais e à minha boa mãe que tem ficado com vosmecê todos estes dias que estou fora.
Todo seu,
José de Arimatéia Soares.
1 Villa de Nossa Senhora dos Remédios de Paratii – atual Parati (RJ)
2 Maganão ou magano – mercador de escravos que enfeitava os negros para agradar os compradores
3 Rascoa – meretriz
4 Intrujar – enganar, explorar
5 Alfaia – utensílio de adorno doméstico ou pessoal
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