Sobre as Tarântulas e a Tez do Papel - CARTINHA PARA JAG
"... era aí que me esquecia do começo. E lá voltava
às teias de aranha, às tarântulas, às viúvas negras..."
in : Teias de Aranha - José António Gonçalves
Cissa de Oliveira
"Dizei-me porque fazeis
marcas escuras no papel que, segundo penso,
é ávido por ventanias e vôos de beijos.
Dizei-me porque escolheis as tintas de
alma mesquinha, e se acaso está na
reprodução do escuro das aranhas
um desejo que vos alegra, apavorando.
Considereis, ao menos, em guardar
os lençóis de cetim para outros versos,
e que o mal que as aranhas fazem
na imaginação de um menino logo é
substituído por algazarras na seda do céu,
ao vento de intermináveis manhãs de verão...
Não desenheis teias na tez do papel,
que elas vos atiram à insônia e sonegam os sonhos
à alma de quem respira pela poesia.
Pinteis de sol o chão das vossas casas
e com o azul de vozes alegres, as suas paredes,
para que os seus limites sejam
os do vosso eterno bem sentir.
Que haja janelas nos telhados por
onde os vossos sonhos escapem nas
madrugadas, ao encontro das estrelas e do
tempo da vovó, que por certo vos assegurará:
- A um príncipe é tolice inventar viúvas negras,
mesmo que por traquinagem..."
PrinCissa"
Cissa de Oliveira
20.02.05
TEIAS DE ARANHA
José António Gonçalves
A minha avó materna temia as teias
de aranha. Não se podia falar em viúvas
negras ou tarântulas, no terreiro de pedra
do calhau, onde ela dormitava nas tardes
quotidianas. Não esperava nem pelas palavras
e pedia-nos que inventássemos histórias.
Adorava contar coisas sobre casas, mas poucas
eram verdadeiras. Imaginava-as desabitadas,
escuras, brumosas. Às vezes colocava-lhes
uns fantasmas a arrastarem correntes, aves
mortas pelo chão, umas gargalhadas de loucas
e refeições opíparas de andrajosos vagabundos.
Eram misteriosas vivendas de luzes apagadas
ou casebres onde certa noite houvera um crime
e alguém fugira, sorrateiramente, ao destino
dos cadafalsos, hoje vivendo noutros mundos,
noutras cidades. Todas estavam abertas; as chaves
que as guardavam em portentosas fechaduras
teriam sido perdidas, nas mãos de um pobre menino.
E o desfiar das mentiras continuava, com corriolas,
janelas invadidas pelas heras, portas carcomidas
pela formiga branca, sangue seco sobre a cama
e lençóis de cetim manchado por rios de lágrimas,
até que começava a acreditar em tudo, em cadáveres
enterrados, descarnados pelo tempo, sob a lama
dos jardins, os olhos dos quadros a tomarem vida,
perseguindo-me na escuridão, gatos pretos sacrificados
e escondidos em armários carunchentos e cheios de pó.
Era aí que me esquecia do começo. E lá voltava
às teias de aranha, às tarântulas, às viúvas negras
e já quem tremia era eu, medroso, tapando a cabeça,
agarrado às mãos firmes e carinhosas de minha avó.
José António Gonçalves
(inédito.19.02.05)