Carta a um amigo português

Pois bem, gostei da saída que deste para a dificuldade de descrição das antigas paisagens alpinas. Conheço alguns daqueles passos como se enfeitam no final do verão, mas não quando escondidos sob a neve, como tentaste descrever, e ainda mais no século XVI! Eu, hein? Não perdes uma oportunidade de agulhar aquela igreja, não é? Gostaria de saber se haveria algo por trás... Sempre que leio teus comentários lembro de um colega. Ele defende a idéia de que quem estudou em colégio de ordem religiosa, ou nasceu num lugar em que religiões ainda têm algo a dizer, tornar-se-á fanático ou ateu, não há outras opções. Sim, mas eu sei que não me revelarias teus segredos... E sobre este tema por aqui paro, para não incorrer no perigo "dos juízos precipitados e da tendência para as condenações sem provas". Quando soube que eu iria a Lanzarote, pouco antes de teu embarque (ou desembarque, depende de como se olha), cheguei a brincar com um colega, fantasiando como seria te encontrar por lá. Imagino que a estas épocas a doença já te havia debilitado tanto que bem capaz é que nem estivesses mais por lá quando vieram à luz minhas ficcionais estripulias. Eu só queria brincar, bem me conheces... Estava lendo tuas Pequenas Memórias quando partiste, e pouco antes havia escrito um texto também sobre ti, mais uma dessas coincidências da vida que não se sabe explicar. Comigo acontece muito dessas coisas. Estava lendo uma edição em Alemão, ainda assim pude reconhecer o DNA do Português sob o manto da tradução do teu pequeno grande livro. Passagens líricas belíssimas, como só quem tem a saudade como filosofia e companheira poderia criar, creio eu. Sim, sem exageros! Aquele professor de quem já te falei certa vez chamou-me a atenção para a correlação entre períodos difíceis pelos quais passa uma gente e a qualidade de sua produção cultural. Quanto mais oprimidos política ou econômicamente, parece que mais livre voa a imaginação, que mais há para se dizer. E como exemplo citou Gil Vicente, e Camões, o que deixa a esperança de que sob a nova onda de crises se descubram novos talentos em Portugal. E eu cito os autores espanhóis da geração de 1898, quando Espanha perdeu suas últimas colônias americanas e muitos se perguntavam pelo seu mal. De fato, achei foi pouco! Não só por ter nascido no Brasil, que ainda hoje carrega marcas da colonização, um ranço que, por mais que o tempo use menta, parece que não sai! E por falar em Brasil, que parece estar sempre com algum problema, não entendo o porquê de uma pobreza intelectual, como já ouvi presumirem alguns. Não creio que toda a população seja espectadora de Big Brother, exceções há de haver, peloamordedeus! São tantas pessoas neste país quase continental! Não gosto da expressão 'gigante adormecido', pois embora pareça o cúmulo do otimismo ainda acredito no futuro do Brasil. E sabes que hoje li num jornal que um famoso considera Memórias Póstumas de Brás Cubas um dos melhores livros que já leu? Muita gente normal já havia dito isso, incluindo eu, mas vindo da boca de alguém assim, conhecido, palavras e julgamentos parecem ter mais valor... Que boboca é o ser humano, não? Como pode a opinião de um só famoso ter mais peso que a de centenas de normais? Digo centenas pra não correr o risco de exagerar, já que boa literatura nunca esteve tanto em alta, o que é uma pena, não? Há pouco estive dando um passeio pelo bosque, aquele em que te levei a passear quando conversamos pela primeira vez. E por ele andando fiquei a imaginar o que dirias sobre o problema da imigração ilegal e os conflitos no mundo árabe atual. Sim, não devemos confiar nos jornais, mas fiquei imaginando que esbravejarias mais uma vez: Direitos Humanos quê! Não há Direitos Humanos!, e lembrei de tuas considerações sobre a perfeição do número três — “Razão têm, portanto, as pessoas que dizem que três foi a conta que Deus fez, a conta da paz, a conta da concórdia. O pior é se um deles (de três homens caminhando juntos) que tenha andado a pensar em eliminar outro para lhe ficar com o farnel, por exemplo, convida o terceiro a colaborar na repreensiva acção, e este lhe responde, pesaroso, Não posso, já estou comprometido em ajudar a matar-te a ti.” — Assim caminha a humanidade, tens toda a razão! O que teria sido do mundo se Adão e Eva jamais tivessem dado chances à serpente, muito menos tivessem começado a se multiplicar, perguntei-me já. Neste caso, o três foi a conta do demais! Como agora estamos na primavera, a fartura verde das árvores no bosque quase não deixa o sol passar, e onde isso acontece monta-se uma paleta incrível, um tom de verde-amarelo que ainda hoje não consegui capturar. Como tu bem disseste, é muito difícil prender uma paisagem só com palavras, e como de ti, durante A Viagem, fugiram as palavras, agora fogem as danadas de mim também! E queres saber de uma coisa, concordo contigo: “Entre falar e calar, um elefante sempre preferirá o silêncio, por isso é que lhe cresceu tanto a tromba...” Interessante metáfora, somos todos parasitas! Pena não possa agora permanecer muito mais tempo sentada, senão escreveria mais, contando-te novidades das bandas de cá. Estou agora pronta para iniciar uma nova etapa contigo, há tantas perguntas a fazer... Pois bem, assim comecei e assim finalizo. Até a próxima vez!

Nota da autora: os trechos entre aspas duplas são passagens de A Viagem do Elefante, José Saramago (2008).

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