Querida Wene,
É nesta carta que eu lhe digo adeus. Ontem de noite voltei para essa casa que pensava ser nossa, mas não a encontrei perdida nos lençóis ou em qualquer outro canto. Lembro que quando exposto pela primeira vez a um desses seus rompantes fui me deixando tomar pelo pânico ao passo que minha mente se perdia em meio a devaneios ruins protagonizados por você.
Não tome como desamor minha atitude. Eu lhe amo querida Wene, bem mais que qualquer Deus que você cultue diga amar. Amo você, minha garota frágil que jamais na vida enfrentará inimigo maior que os próprios ímpetos enigmáticos e autodestrutivos, amo cada um dos demônios que por medo você esconde de si mesma dentro do peito, amo sua fúria, sua intensidade, seu drama. Tudo em você sempre foi tão maior que em mim.
Parto hoje e sem volta porque descobri, enclausurado na solidão silenciosa do nosso quarto, que nem todo o amor do mundo seria capaz de salvá-la. Ora, veja bem, se você cai do precipício eu não hesito em segurar sua mão, mas não há nada a se fazer quando você me solta e se deixa quebrar sobre o chão.
Foram três longos anos de vida conjunta e só agora (finalmente) consigo me isentar dessa culpa. Antes de conhecer as correntes certamente não saberia reconhecer a liberdade. Estou feliz, cara Wene. Feliz e verdadeiramente livre.
Mas eu não deveria falar sobre mim nessa carta. Quero dizer, sempre houve esse nosso consenso implícito de a minha parte ser a mais desinteressante. Talvez fosse por isso que nos desenvolvemos uma espécie de relacionamento unilateral onde boa parte de nossas conversas eram sobre você ou sobre algo que você vivenciou ou quisesse vivenciar, nunca sobre mim. Parece besteira a minha quebrar essa tradição bem agora, no fim.
Wene, lembra que na semana retrasada você estava deprimida e eu lhe levei para jantar no seu restaurante favorito? Parecia ter sido uma boa ideia, mas então no meio da refeição você reclamou da comida, dizia ter se cansado de comer no mesmo restaurante e começou a parafrasear sobre sua própria inconstância e necessidade do novo? Deu-me a sensação de você estar comentando indiretamente sobre o nosso relacionamento que já deixou de ser novidade há algum tempo, mas tentei me acalmar. A ideia de você me deixar acabava comigo, acho graça de estar ocorrendo exatamente o oposto. Ironicamente.
Mas hei de lhe poupar do meu humor distorcido, agora tudo me parece terrivelmente engraçado. Quanto ao restaurante, era raro você gostar das coisas, então me atinha ao que dava. No caminho de volta, por sinal, um casaco exposto na vitrine da Banana Republic chamou sua atenção e você ficou comentando dele durante todo o caminho de volta. Entendi bem o pedido, e teria comprado para você naquele momento se a loja já não estivesse fechada.
Ontem voltando para a casa depois do trabalho comprei o casaco e uma caixa do chocolate que recentemente você dizia gostar. Como sabe, não sou desses românticos que vivem dando presentes despropositais, mas ontem foi o seu aniversário, talvez não se lembre. Você nunca sabe o dia de hoje. O casaco está embrulhado em cima da mesa da sala. Não sei se notou quando voltou desorientada (você sempre volta pior do que quando parte) e achou essa carta. Olha, fique com ele e não destrua nada além do papel de presente quando a raiva aflorar. É de coração. E custou caro.
Não sei o que mais devo dizer. Tenho certeza que vivemos juntos momentos maravilhosos, certeza absoluta, mesmo que neste momento não me ocorra nada. Talvez eu esteja me deixando levar pela raiva momentânea e então quando eu ficar velho e morrer sozinho e infeliz assim como o decrépito senhor Robson, um vizinho mal humorado que nunca abandonou minhas memórias de infância, eu venha a pensar no tanto que eu a amava e recordar cada vil momento que passamos juntos como se tivessem sido os melhores da minha existência.
E então eu me arrependeria de ter partido, de ter deixado você jogada a própria sorte. Ficaria remoendo isso muito além de túmulo e me arrependendo constantemente mais e mais. É isso, ou eu posso simplesmente encontrar outra mulher com uma vida tão desinteressante quanto a minha e com ela achar um novo sentido para minha existência, acumulando descendentes e dinheiro para sustentá-los.
Falando em dinheiro, não sei como você vai ficar sem mim. Ligaram-me do restaurante onde você trabalhava para avisar que te demitiram. Não penso que seja uma novidade porque pelo o que contaram você agrediu verbalmente um cliente e foi embora sem dar satisfação; não é o tipo de acontecimento que termina sem consequências, você sabe.
Bom, por hora não devo me preocupar com você de volta a vida das ruas. Ao menos esse imóvel eu deixei no seu nome e corresponde a um teto onde você possa dormir. Mas lembre-se que é só por um tempo e que logo as contas vão começar a chegar e você terá que dar um jeito de pagá-las por si mesma.
Deixei esquecida uma soma razoável no fundo falso da gaveta do meu criado mudo. Você conhece bem esse esconderijo porque sempre notei que uma boa quantia ia sumindo e nunca duvidei que fosse coisa sua. Não entendo isso de você se negar a pedir, sempre foi tão fácil conseguir as coisas de mim. Ainda assim, eu costumava colocar mais dinheiro e mantinha o esconderijo para você poder achar alguns trocados quando precisasse.
Meu avião parte daqui a três horas. É meio óbvio que chegarei atrasado ao aeroporto, mas estou voltando, amada Wene. Creio nunca ter sido um mistério, ouvindo meu sotaque, que eu fosse estrangeiro. Estou voltando para minha pátria, àquela mesma cujo nome você nunca se lembrou de perguntar. Em três anos de união informal, você não se preocupou em saber nada sobre mim, ao passo que eu a conheço de cor.
Queria dizer um pouco mais, lembrar do passado e me deixar afogar em meio à nostalgia. Sendo honesto tudo o que eu vejo agora é um vão, até seu rosto que outrora pensava ser belo se converteu em uma mancha difusa. Tive medo de você aparecer enquanto eu não tinha partido ainda, mas percebo agora que o acaso conspira a favor da minha libertação.
Então é isso, doce Wene. Parto sem saber como verdadeiramente você se chama. O tempo mesmo haverá de esquecê-la, no fim até o nome de batismo era para você uma formalidade desnecessária. É também vão me expor nessa carta? Adeus, querida.
Rafael.