Papai, por que me impusestes a vida?

A visão de uma espinha enorme e muito vermelha no nariz de minha filha causou-me grande impacto. Eu a via dormir no sofá da sala, completamente entregue à inconsciência, totalmente vulnerável, e a espinha que parecia querer explodir espontaneamente.

Cheguei bem próximo a ela e comecei a olhar a espinha, com medo de que aquilo estourasse de repente e voasse todo o conteúdo purulento em minha cara. Olhei, coloquei o dedo, fiquei com vontade de apertar...

Súbito, veio à minha mente: o que eu fiz? Por que coloquei essa criatura no mundo? Com que finalidade impus a ela tamanho sofrimento, a bizarra sentença de viver? O vermelhidão da espinha parecia acentuar-se em meio às minhas reflexões. Por vezes, eu via a espinha pulsar.

Pensei em quanto sofrimento a minha cria ainda iria passar por toda a sua vida. Quantas amarguras, tristezas, depressões, frustrações, ansiedades... É certo que haveria alegrias, mas o número delas são tão ínfimos comparados à amplitude infinita das nossas dores e misérias...

É isso mesmo, miséria!

Quem dá a vida como dádiva também impõe a morte. E com isso todo o sofrimento, todo peso de viver, com suas pouquíssimas alegrias, seus parcos momentos de contentamento genuíno.

Feliz foi Brás Cubas que não transmitiu o legado de nossa miséria a nenhuma criatura. Disse no capítulo derradeiro das suas memórias póstumas que saia da vida não devendo nada, nem quite, mas com saldo, um amplo saldo.

Em pouco tempo a espinha de vermelha tornou-se amarela. A minha vontade de apertá-la, e colocar todo aquele líquido com pasta amarela para fora era grande. Como se eu quisesse purgar ali todo o sofrimento pelo qual a minha criaturinha ainda iria passar.

Eu olhava para ela e me arrependia, parecia que ela estava triste por viver, a espinha no nariz parecia me cobrar o mal que fiz a ela. É como se a espinha apontasse o dedo em riste para mim e dissesse:

- Eu sou o sofrimento que você impôs à sua inocente filha. Contempla-me, veja o meu potencial de causar dor, o meu poder de tornar pior a vida das pessoas. Contenta-se com o teu mal? Com a besteira sem tamanho que fizeste?

Minha filha continuava entregue ao sono, totalmente alheia a tudo, respirando com dificuldade, com sua cara de tristeza e seu enorme potencial para a vida sofrida. Fui fazer um café, sentei-me no sofá junto a ela, fiquei triste por ter feito o mal maior que pode ser feito a alguém, dar-lhe a vida.

Frederico Guilherme
Enviado por Frederico Guilherme em 13/04/2011
Reeditado em 17/04/2011
Código do texto: T2905916
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