Carta IV
Nos toma pelo avesso a noite durante o dia e também as coisas do dia durante a noite. Nos avexa a vida. Falo da dor, mas nem é dor nem nada o que sinto. Não é nada.
Quando assim é, ficamos descalços e com as sandálias nas mãos, o perfume se esvai e não o retenho, mas é como o orvalho que amanhece: todo cheiro, toda essência viva em cada lembrança, numa memória viva, e não é só isso que vive em nós? memórias incomprrensíveis, misteriosas, concretas? A vivência dos gestos não se apaga nem com o tempo e são belos os lírios sobre a mesa, mas são mais belos ainda os lírios tomando luz como se toma café ao lado de quem se ama. Aquele listrado de sol intermediado pela nossa gelosia. O que nos basta? Nada. Nem a presença nos bastaria. Somos esses seres de incomprrensão e mistério profundo, ausência que se preenche com a iluminada essência e ancestralidade que também nos criou e nos viu correr pela sala, pelo corredor ainda nus, somos sem pretenção alguma luz no candeeiro atravessando a escuridão. O que nos tira a dor? Nada. Somos a dor tanto quanto somos alegria das borboletas no jardim.