Sangria

Talvez eu devesse dispersar esses raros minutos de ócio alimentando essa porcaria de planilha de produção cretina que essa cambadinha de molóides anda exigindo ao invés de ficar procurando entender o porquê de estar sendo acometido por essa saudade do que eu há tempos decidi enterrar e dar como morto. Depois que tudo desceu pelo ralo do trágico e inclemente nosso destino, eu nunca parei pra pensar no passado. Ele vem, ele vem, não posso deixar de admitir. O passado incrusta na minha pele e às vezes causa coceiras desagradáveis. Passei a usar repelente. Essa filha da puta aqui do meu lado não pára de falar do tamanho da rola do playboy do reality show. Não consigo pensar direito com essa mal-comida falando alto. Quando ela abre a boca pra falar comigo eu desejo um AVC. Ela colocou na cabeça que eu ando com depressão profunda por esses dias. Que uma pessoa com uma mentalidade rasa ao ponto de suspirar por um vagabundo de sunga tem de me diagnosticar como depressivo? Eu prefiro essa cônscia desilusão que é a realidade do que fantasiar algo próximo e ao mesmo tempo intangível. Ao contrário do que imaginava, não sinto mais indiferença por você, pelo nosso passado... Sinto ódio, mesmo. Se essa aspirante a psicóloga escritora de campos de horóscopo tivesse certa autonomia, ela poderia dizer que eu ainda amo você, já que o amor e o ódio estão interligados. Eu ainda te amo, cara... Quando aquela outra ali, formada em Biologia ou coisa parecida, disse que eu gostava mais de você do que eu mesmo pudesse mensurar, de uma forma que eu jamais poderia conseguir expor e cristalizar em palavras ou demonstrações de afeto, eu desacreditei. Afirmei que sabia a extensão do meu sentimento e sabia também que ele minguaria rapidamente, sendo diluido no balde de traições a que nos submetemos de forma mesquinha. Aonde foram parar nossos sonhos, porra? Acabaram, esfarelaram com essa sucessão de dias deprimentes em que vivemos alimentando glutões sem sermos alimentados. Deixamos que nossos desejos mais intensos fossem defenestrados ao terreno baldio do descaso. Hoje eu sinto o quanto poderiamos ter ido longe não fosse essa sua gana por sobreviver. Foi mais fácil aceitar morrer em vida e me deixar ao relento do que dar uma espiada no futuro incerto e nublado que nos esperava. Eu não consigo te perdoar por isso. Por mais que eu te odeie ao ponto de te amar e por mais que eu te ame ao ponto de te odiar, perdão é uma palavra que não figura no meu vocabulário quando o assunto é o "nós" que deixou de existir. Tantos planos, cara... Até essa mocréia sebosa de pernas cabeludas aqui do lado que sabe que vai morrer solteira achava que formávamos o casal mais lindo dessa droga dessa cidade decadente. Eu quero voltar a sentir indiferença. Já faz tempo que a alimento te jogando pra escanteio nos meus pensamentos mais bonitos. Talvez eu preencha essa planilha de produção diária que eles tanto querem e pedem todo dia. Não sei por que não me mandam embora de uma vez e contratam alguém que preencha essa merda do jeito que eles querem. Esses prédios do terreno ao lado já estão prontos. Pessoas moram nele. Lembro-me de quando estavam em construção; época em que encostávamos na janela pra ver o pôr do sol entre eles conjeturando sobre a compra de um apartamento com vista pro centro da Cidade. Olho esse pôr do sol agora, sem aqueles guindastes de outrora. Decidi passar naquele mercadinho que íamos sempre. Vou comprar café solúvel e canela e fazer capuccino. Vou me esticar na cama que de vez em quando exala o seu cheiro com o copo em mãos e sorver o capuccino, inalar a canela e, mais uma vez, tentar esquecer que você foi, é, e talvez continue sendo a única mulher que eu poderia amar nesta minha vida torta. E que não está aqui agora para roçarmos juntos os nossos pés gelados...

Lobão - Das Tripas Coração

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 03/03/2011
Código do texto: T2825455
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