Arraial do Tijuco, 29 de abril de 1.756.
 
          Minha amada filha Helena, que Deus a abençoe.

          Foi muito bom vê-la e constatar que, de fato, dar-nos-á um netinho. É uma bênção muito grande concedida por Deus, nosso Bom Pai, ver os filhos de nossos filhos. Seu pai escreve esta carta com orgulho de avô, apesar dos últimos acontecimentos aqui em casa, que lhe contarei a seguir.

          Gostei muito de sua casa, que tem um luxo tão nobre e tão sóbrio, e também das escravas mais próximas, embora ainda julgue Marvina um tanto preguiçosa. Percebi o cuidado que Querência tem com vosmecê, como se fosse uma filha, e isso me deixou confortada. Devo admitir que José tem sido bom esposo para vosmecê, minha filha. Apesar de sua origem, é rico e estudado e a trata como a verdadeira dama que é. Tudo isso é um grande alento para minha alma atordoada pelas atitudes insanas de sua irmã, Bastiana.

          Como já deve saber, seu pai desfez o negócio do noivado com o José Augusto Pereira. Bastiana ficou dous dias trancada no quarto, sem comer, nem falar com ninguém. Com muito custo, levei-a à missa no domingo e tive o enorme desgosto de vê-la a rir das chalaças1 do José Augusto que não sei o que veio fazer aqui no Tijuco. Oh, minha adorada filha! Agora é que vejo o quão boa filha sempre foi para mim! Bastiana só tem me dado desgostos! Primeiro aborreceu-se porque vosmecê esperando filho não poderia ajudá-la com o vestido de noiva, pois além dos incômodos, ainda tem que dedicar-se ao enxoval do neném. E, para piorar, fugiu de casa e demos por sua falta há dous dias... Não sabemos quando ela foi embora e seu pai colocou o feitor Antônio Diabo no seu encalço. Seu irmão Dilermando Filho foi junto. Tive um deperecimento2 quando soube e estou acamada desde então. Ainda não temos notícias e tenho rezado dia e noite para Santo Antônio ajudar-nos a encontrar sua irmã e para que este infortúnio não se espalhe pelo arraial. Nunca nossa família sofreu tamanho desar3! Se alguém mais souber desta desgraça que se abateu sobre nossa casa, nunca mais casaremos Bastiana e suas irmãs mais novas e temo até mesmo pelo seu casamento, Helena. Por isso, peço-lhe que não diga nada a José, nem às suas escravas. 

           Sua madrinha Francisca esteve nos visitando ontem. Esforcei-me para que ela não me achasse esbatida4. Sua barriga, como pôde ver, não está muito grande, mal aparece. Disse a ela que creio que terá uma menina, pois está muito parecida com a época em que esperava a Quitéria. Comadre Francisca disse que ficou muito satisfeita de ver vosmecê no comando da casa, que é parecida comigo e que dei provas de que sou muito boa mãe e sei educar e criar filhas recatadas e zelosas com suas obrigações. Isso me doeu n’alma, Helena! Como Bastiana me faz uma coisa dessas? Não disse nada à comadre, porque vosmecê sabe como ela é linguaraz5...

          Mando um doce de tijolo6 para vosmecê e para seu marido. Repouse bastante, não pode sentir cólicas ou perderá o neném. Reze por nossa família e para que nada de mal aconteça à sua irmã. Fique com o bom Deus nosso Pai, minha filha, e tome a minha bênção e de seu pai.
 
                                        Sua mãe, Maria Joaquina Pereira Gonçalves.
 
1 Chalaça – gracejo, dito ou feito espirituoso;
2 Deperecimento – desfalecimento, esgotamento;
3 Desar – desventura, desgraça;
4 Esbatida – de cor pálida, apagada;
5 Linguaraz – falador, mexeriqueiro, maledicente;
6 Doce de tijolo – goiabada.

 (Imagem: http://pedroa-o.blogspot.com/2010/08/ame-as-palavras-como-amas-as-pessoas.html)