A tua lembrança
Eu fiquei revirando na cama esse tempo todo, sem saber bem onde estava a vontade de escrever. Revirei um pouco mais as memórias e (te) encontrei... a resposta.
Foi difícil, sabe... eu não podia dar atenção a nenhum dos sentidos, que cada pequeno gesto levava a um novo-velho-pesadelo. Sonhei muito com você. Doeu muito também.
Andando por aí, não demorou pra encontrar alguém com um jeito parecido, uma gargalhada, um cheiro de sabonete nas mãos, às vezes até o contorno do corpo. E olha, você nem imagina quantas pessoas têm o contorno do seu corpo. Nem eu imaginava. Acho que ninguém nunca se deu conta dessa semelhança. E todo mundo tá sempre tão preocupado... é, ninguém se deu conta.
''Eu tô bem'', é a minha resposta. Todo mundo sempre quer saber se eu superei, se tô com outra ou se ainda dói. Um decorado e educado ''Eu tô bem'' sempre me ajuda a esquivar. Só que no fundo, lá dentro, eu não sei se existe uma resposta dessas que serve de consolo pra mim e de açúcar à hipoglicemia que a minha vida se tornou para os outros. Cansei, sabe? De dar satisfação de cada passo, de pedir permissão pra ir à esquina alugar um filme ou comprar fogos de artifício. Aliás, até as minhas comemorações eu tenho que justificar. Parece que não dá mais pra andar na rua sem ser confundido com os outros. ''Eu tô bem''.
Eu tenho chorado pouco ultimamente, mas queria ter chorado tudo o que não choveu esse mês. Não foi vontade, sabe? Eu até me emocionei com uma notícia triste no jornal ou com as crianças cantando no natal, mas você sabe que não é a mesma coisa. Chorar por quem a gente não conhece é uma dorzinha de leve, picada de agulha, tropeço de criança no jardim, gosto de remédio na boca. Chorar por quem a gente ama é diferente, dói em progressão geométrica. É topada de dedão no canto do sofá, enxaqueca em dia de chuva, medo de palhaço na infância, gosto de remédio na boca... quando você não tomou remédio. É como cortar o dedo com papel laminado, sabe? Aquela dor fininha, garoa que anuncia o temporal. O corte é seco, milimétrico, mas dói horrores. E pior, são esses cortes que demoram mais pra cicatrizar. Eu nem me dei conta de que já passou tanto tempo.
Eu conheci muita gente nesse tempo todo. Gente que me ensinou a rir e chorar de novo. Amigos de verdade, sabe? Dessa vez acho que são mesmo. Percebi que tá na hora de levar logo alguém pra vida toda, se não ela acaba e não sobrou ninguém pra fazer um discurso de elogios sobre mim... tá, não precisa ser só com elogios, mas dá um desconto, eu vou estar morto...
Fazia tempo que eu não ria de verdade, sabe? Eu já nem lembrava de muita coisa... Meio distraído, me dei conta do que se foi... Ah, claro, desde aqueles sábados chuvosos com sorvete de creme e calda de morango. Aqueles filmes chatos na TV, aqueles filmes longos no cinema – dos quais eu nem sabia o nome na hora de comprar as entradas, mas que ainda guardo os bilhetes no fundo da carteira. Aquele dia de chuva na rua, aquelas roupas molhadas. Os trovões. Tá, eu confesso, eu sabia que a capa de chuva tava furada, mas eu não podia perder a chance de ver você daquele jeito, reclamando dos cabelos, do frio, dos lugares no estádio... até do gol do seu time você reclamou naquele dia. E como foi bom poder te aquecer no meio de toda aquela gente, de toda aquela água sem fim caindo do céu. Como eu sinto falta daquela capa de chuva furada. E você nem sabe...
Eu sinto que ainda tem alguma coisa aberta, mal fechada, adormecida, inerte talvez. Sabe quando você toma uma garrafa de suco e depois enche com água, na esperança de tirar o gosto? Você acha que vai conseguir aproveitar a garrafa, mas o gosto de suco continua, lá no finalzinho, misturado à água e toda a sua nova transparência contaminada. Aquilo não sai da garrafa. Isso não sai de mim.
O meu medo não é mais ficar sozinho, já superei essa fase existencial. Aprendi a fazer companhia e a me distrair com as pessoas que passam na rua. Estou mais tolerante, mais equilibrado, mais... velho, eu acho. Ainda gosto de palavras difíceis e de escrever além das linhas, mas reconheço a renegada beleza da simplicidade também. Ainda me incomodo com palavrões gratuitos e excessos etílicos e fermentados, ''Um refrigerante com gelo e limão, por favor''. Tenho escrito pouco, falta-me inspiração, vontade, paciência, infinitas desculpas. Sobram lembranças. E eu bem sei o tom de cada uma delas. Eu ainda observo a madeira queimar na fogueira de São João. Hesito um instante, ouço estalos, durmo, esqueço, desperto... e tudo recomeça.
Não compro mais presentes, agora eu os faço. Sim, providencio uns enfeites, escolho umas cores, uma caixa preta – preto sempre ajuda a preservar o mistério do embrulho -, uma flor pra não esquecer das origens, e pronto. Demoro horas pra montar alguma coisa, você sabe que eu gosto de sofisticar um pouco (e quantas vezes a gente não se atrasou porque você ficou pronta antes de mim? Tá, deixa pra lá). Sabe, assim eu acho mais sincero, mais pessoal. Gosto que as pessoas guardem algo que eu mesmo criei, algo que seja exclusivo, único, como a estrela que eu te dei no meu aniversário, lembra? A mais brilhante. Sim, ela ainda está lá. Será que você lembra? Claro, não podia ser diferente... será que só o meu céu ainda tem estrelas? (Você nem sabe por quanto tempo elas ficaram apagadas...).
Sabe, depois daquele dia aconteceram tantas coisas: eu me cansei de futebol, visitei igrejas, parques, hotéis, teatros e bares. Falei palavrão, apresentei um monólogo, fiz papel de palhaço – no palco também -, dancei nas festas e em algumas provas, (me) mudei. Troquei de óculos, de achocolatado, até camarão eu parei de comer. Agora, pelo menos, tolero aquelas músicas melosas que você gostava e que antes eu não suportava. Aprendi a gostar de botânica, desaprendi a gostar de fricassé. Superei, em parte, as superstições, mas ainda piso nas calçadas pretas com o pé esquerdo. Não faço mais aquele sinal de meio coração com a mão direita, mas parece impossível perder o vício de pedir desculpas por tudo. Aprendi novas músicas, precisei esquecer a nossa. Nunca mais ouvi forró sem sentir um apertozinho no peito. Nunca mais encontrei planárias nas tardes de quarta-feira. Nunca odiei tanto o número da besta. Fingi que esqueci os seus telefones e todo o resto. Menti em janeiro pra não doer mais em dezembro. Os dias não passam... o meu calendário revive os anos diariamente.
Olha, eu sei que você não pediu pra eu escrever nem mandar notícias, mas eu faço isso mais por mim do que por você. Aquele lance do tempo fazer diferença é a verdade mais mentirosa que nos contam, e a gente acha que de repente vai ficar bem e conseguir ter o mesmo apetite de antes. As vitrines me assustam. Os cômodos. A comodidade. As cadeiras brancas. Os violinos antigos. Mamão com cassis. Sou avesso a fogueiras e coleção de medalhas. Não sei mais por onde andam aquelas pequenas mãos azuis, aquele olhar na direção da lua, o sorriso de criança, aquele all star preto, sem cano alto ou faixas coloridas. É realmente estranho. É realmente vago. Estou me esquecendo das gírias do seu vocabulário, sem saber pra onde isso pode me levar. É uma pena você ter saído na melhor parte do show.
Eu cansei de te defender, sabia? E sei que o grande problema é insistir em te acusar de alguma coisa. Nunca houve um culpado, um responsável, uma fonte. As coisas não funcionaram do jeito certo por muito tempo. Nem sei como conseguimos chegar tão longe. Agora fica uma sensação de impotência, sabe? Como se a vontade existisse, sozinha, assistindo uma série de privações a me proteger das lembranças que, involuntariamente, guardo – eu não sei se quis dizer involuntariamente. Acontece que eu cansei das memórias, dos mesmos lugares, de rir dos bêbados e beijar as bêbadas. O meu cotidiano está amarrado ao passado, feito carro que anda aos trancos, bateria arriada, criança com asma, sabão que arde nos olhos. Eu assisto ao mesmo programa diário sobre a minha vida, sentado no mesmo sofá de antes, abraçado às mesmas almofadas de pano e sem estampas, no mesmo lugar. E é exatamente essa mesmice insuportavelmente tediosa que me sufoca, que me envenena e me alucina, quando durmo acordado. Sabia que eu ainda sonho muito? É, eu sei que ainda vivo pouco. E bem menos desde então.
Eu consigo lembrar de coisas estranhas, algumas até nem sei se aconteceram mesmo ou se misturei ficção e realidade sozinhando. Outro dia lembrei do estralar de dedos na sala de provas em silêncio, do alinhamento das carteiras ao rejunte do piso, do seu sorriso quando percebeu a minha maluquice. Da sala de informática vazia. Da sala de informática cheia. Daquele abraço na hora de ir embora. Ah, aquele abraço cansado, corrido e sem preço. Foi um dos melhores, porque eu sei que você precisava. Lembrei do suco de uva à base de soja, das apostilas de geografia em cima da cama, da minha foto sobre a escrivaninha, da tua balinha de menta preferida da garoto. Eu lembrei. Dos desenhos no cristal, dos desenhos virtuais, do ''entendeu ou quer que eu desenhe?''. Eu lembrei. Da primeira mensagem no celular, das infinitas respostas, da mensagem especial, dos sacrifícios rodoviários – que eu cometeria tantas outras vezes sem reclamar -, do medo, da violência, da loucura por viagens, da loucura por você. Eu lembrei. Dos trava-línguas, do capô do carro, do ''PS'' em final de carta, do ''PS'' que acabou, da sua vergonha, do seu gosto, dos teus sons, do teu colo. Eu lembrei. Dos dentes, dos calos, da pele, da Índia, do teclado, da paciência, da estrada de terra, do motel vazio, do lacre, dos insetos, das dúvidas de química, da surpresa. Eu lembrei. Da pulseira azul de cristais, dos cowboys se beijando, de Netuno, da sede, do suspiro, do cansaço, das horas no telefone, das madrugadas de namoro adolescente, da nudez, do toque, dos lábios, do teu ouro, de ontem. Eu lembrei. Até do teu futuro, distante, colorido, melhor, lindo sem mim, eu lembrei. E de mim? Por que não lembro(a)? Que porra de memória é essa que apaga tudo o que eu vivi e só guarda onde existiu você, você, você, você, você?... que droga de presente é esse, viciado no meu vício em você, embriagado de ilusão, pobre, porco, sujo, hostil? Que feriado de merda têm sido os meus domingos sem ressaca, sem aniversários, sem segunda-feira pra (te) esperar, sem hálito de vodka, sem perder hora, sem ânsia, sem sangue fresco, sem ar... sem nós... sem você? O que mais eu posso querer?
Ofereço-lhe não mais que a verdade, não mais que a certeza, não mais que o prazer. Os telefones ainda tocam, as portas ainda se abrem, a valsa ainda é triste. Velho ou novo, ele continua o mesmo, vermelho-inexplicável. As caixas ainda se empilham, as verdades ainda doem, a lembrança ainda fere. Só as nossas vidas que não se cruzam mais.
Eu juro que tentei te esquecer... mas você não me disse como.
Se alguém perguntar, ''eu tô bem''...
Sinceramente (ainda seu), J.C.S..