Carta para Nelson Ichisato

Fagner Roberto Sitta da Silva

“Cerejeira em flor —/ De tanto olhar até doem/ Os ossos do pescoço.” Nishiyama Sôin (1605-1682) – Poeta japonês.

“Debaixo de uma cerejeira/ Tudo é servido/ Decorado com flores.” Matsuo Bashô (1644-1694) – Poeta japonês.

Ohayou gozaimasu (Bom dia).

Ainda não consegui acreditar que na noite do dia 21 ao convidá-lo para a homenagem que faríamos ao poeta Letterio Santoro o senhor deu seu sim. Não que eu esperava uma resposta negativa, mas estava telefonando para o “Pai das Cerejeiras”, pessoa que tenho grande admirção, alguém que colocou esta cidade no mapa ao plantar despretensiosamente as cerejeiras do Lago.

E também não estou acreditando no que fizemos na noite que se seguiu quando Daniela Maria da Silva, Edílson, Fábio Martins e Duliana Peres da troupe teatral Imagen/Ação e mais este relez cronista nos dirigimos até sua casa para buscá-lo e o encontramos de terno, pois para o senhor era uma grande honra ser convidado para homenagear um grande amigo. E nos dirigimos para o Lago, o “Pai das Cerejeiras”, quatro atores vestidos de palhaços (clown’s) e um aprendiz de poeta, com a intenção homenagear os cinqüenta anos de atividades de um poeta nato e que daquele dia em diante passaria a ser conhecido por todos como o “Poeta das Cerejeiras”. Tudo isso porque homenagear o talento ainda vivo é preciso, nunca homenageá-lo em vida e só lembrá-lo depois de morto, depois que toda fibra descansa inerte na terra fria é como tecer um eterno pedido de desculpas; o que é dispensável do ponto de vista do homenageado.

Quando havia telefonado para o senhor na noite anterior ao evento falei que a homenagem seria apenas para o Letterio, esqueci de mencionar (propositadamente) que ela também se estenderia ao senhor; como também havia falado ao Letterio que a troupe estaria indo se apresentar caracterizada no Lago e que iriam ajudá-lo na entrega dos poemas às cerejeiras que ele confecciona há treze anos e os entrega pessoalmente aos visitantes. Tudo bem... Foram pequenas mentirinhas e esquecimentos para um nobre fim.

E durante aquela noite – enquanto todos corriam pra lá e pra cá em busca de algo para comprar nas barraquinhas, no meio do jardim plantado por ti, poetas, escritores, atores, gente de toda arte, seus familiares, amigos e pessoas que por ali passavam e que por curiosidade pararam para assistir acabaram vendo a homenagem feita ao “Poeta das Cerejeiras” e ao “Pai das Cerejeiras”; tudo feito de maneira simples, porque são de gestos simples que são feitos os momentos eternos e que ficam na memória.

Mas esta história é mais longa, já tem quase três décadas. Não a vi começar, mas lembro de quando eu e meus primeiros amigos, ainda pequeninos e nos primeiros anos da vida escolar, éramos levados até o Lago no antigo trenzinho, lá brincávamos no parquinho e andávamos de pedalinho e também éramos levados pelas professoras para ver as cerejeiras que não eram tão frondosas como hoje – éramos novos, as cerejeiras também: como o tempo passa?! Em meados dos anos oitenta o Lago tinha outra cara, havia ainda a casa do zelador e não havia aquele alambrado que está ao lado da calçada.

Naquela época, podíamos andar sobre as pedras e ver de perto os peixes, tentar pegá-los com a mão ou levar pão duro para alimentá-los. Nem sabíamos, mas já estávamos sendo ensinados sobre a importância da preservação do meio-ambiente. Tempos depois, quando já tinha mais idade, fiquei sabendo que aquelas cerejeiras foram plantadas porque um senhor vindo do Japão queria plantar as árvores de sua terra para matar a saudade que sentia do seu lugar de origem. Claro que no começo muitas pessoas duvidavam que elas iriam sobreviver, mas com o cuidado que receberam elas cresceram, floresceram e até hoje nos encantam.

Penso que esta é uma história que todos garcenses deveriam conhecer, pois para mim é incrível pensar que enquanto existem pessoas que fazem da vida das outras um inferno, existem algumas (poucas) que preferem cultivar a paz, e nesse pequeno grupo há outras – e essas são raríssimas e dignas de admiração, e estas preferem cultivá-la plantando aqui mesmo nessa terra de tanto sofrimento um pedaço do Jardim do Éden... Um pedaço especial do Jardim Eterno, talvez uma estrada, um caminho com cerejeiras sempre floridas para os eternos namorados ou um local onde possamos parar e meditar, juntar os amigos para conversar sem se preocupar com o tempo, pois só existiria um pequeno espaço entre o momento presente e a eternidade.

É tão bom saber que um senhor que se encontra no alto dos seus tão bem vividos oitenta e sete anos ainda planta, cultiva e colhe os frutos dos seus sonhos enquanto muitos já perderam as esperanças e trilham caminhos equivocados e vazios. No Lago posso parar muitas vezes para descansar, meditar, ou ler, ver nas manhãs de domingo os cidadãos garcenses fazendo caminhada, ver a névoa que paira por sobre as águas. Durante a noite posso ver os amigos reunidos para conversar, os namorados.

Na verdade o bosque que foi plantado por ti em volta do Lago é hoje ponto de encontro, orgulho de todo garcense. Lá podemos encontrar os amigos ou até mesmo encontrar um amor. E isso não é algo bem parecido ao que se faz na terra do Sol Nascente quando as famílias ou amigos se reúnem embaixo das cerejeiras para celebrar os laços que os unem? Também ia até lá, nos tempos da minha adolescência, para desenhar. Passava horas e horas sentado à beira do Lago desenhando, vendo as árvores, as aves com os lápis-de-cor espalhados pelo gramado. Hoje já não tenho tanto tempo, divido o tempo entre a faculdade e o trabalho, mas vou ao Lago nos fins de semana para descansar a alma, recarregar as forças para mais uma semana de correria e rever a paisagem que já faz parte da minha alma.

Mas claro que nessas horas também há o desgosto de ver como algumas pessoas com seus gestos suínos tratam o Lago, é só dar uma pequena volta para se deparar com latinhas de cerveja, garrafas Pet, papéis e mais papéis, até já encontrei uma vez com uma pizza inteira boiando nas águas. Ainda há pessoas que não ignoram a presença das lixeiras instaladas em volta do Lago e em alguns pontos entre o bosque das cerejeiras. Fazer o quê? Cada um tem a consciência que cultivou... Cada um colhe o fruto que planta...

Das novas lembranças que guardarei daquele local há a de um dia em que um grupo de amigos formado por jovens artistas garcenses, entre eles alguns integrantes da APEG e do Imagen/Ação, se reuniu na beira do lago, para conversar, cantar, celebrar a amizade de forma simples: iluminados por um lampião, tomando um bom vinho e refrigerante, vendo a lua cheia refletida nas águas enquanto um amigo (Rafael de Souza) tocava seu violão acompanhando o canto de Daniela Maria da Silva. Uma noite ótima que pensamos repetir nestas férias e, quem sabe, durante muitos anos de nossas vidas. Se as cerejeiras foram plantadas com o intuito de fazer com que as famílias e amigos daqui do ocidente pudessem repetir o que é feito no oriente, posso dizer que isto se concretizou.

E quando chega uma nova florada mais e mais pessoas vêm para celebrar algo que parece que já faz parte do Japão desde sempre, como pude ver nos haicais de Nishiyama Sôin e Matsuo Bashô do século XVII e de tantos outros que celebraram a primavera japonesa. Haicais que aprendi a fazer por ter ilustrado uma exposição de Letterio Santoro e que hoje também componho em louvor das cerejeiras. A cada florada ou a cada visita ao Lago acabo compondo outros e estes novos vão se juntando aos meus humildes “Haicais das Cerejeiras”. As cerejeiras estão presentes também na obra de tantos artistas garcenses. Teria outras coisas para falar sobre a minha convivência com as cerejeiras, e que vem sendo cultivada desde pequeno, pois nasci durante uma dessas floradas, na verdade, numa das primeiras, no início de uma manhã fria de inverno.

E como estava comentado com a Veridiana Sganzela Santos, deveria escrever algo para falar disso, algo como uma carta de agradecimento. Deveria falar, como também estávamos comentando no dia da homenagem (Veridiana, Duliana, Fábio, Fernanda de Souza e eu), que havíamos feito algo que entraria para a História da nossa cidade e que seria uma história para lembrarmos para o resto das nossas vidas, pois naquela noite havíamos levado o “Pai das Cerejeiras” para homenagear um amigo, para que ele também fosse homenageado por artistas de todas as idades – gente que viu aquelas cerejeiras serem plantadas e gente que cresceu com elas, e que isso seria uma história para contarmos para nossos filhos, netos...

Como havia falado durante o evento sobre a minha geração que cresceu vendo aquela paisagem e que hoje se dirige até lá para encontrar os amigos durante a noite ou aos fins de semana: Minha geração deve muito ao senhor que plantou as cerejeiras. O senhor que plantou a paisagem que levarei pela vida inteira e por onde quer que eu vá...

Sayonara (Até logo).

Texto publicado no Jornal Comarca de Garça em 14/07/2007

Fagner Roberto Sitta da Silva
Enviado por Fagner Roberto Sitta da Silva em 21/01/2011
Código do texto: T2742225
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