Para os Olhos de Mangá

Tenho cá uma redação que preencheu três folhas, tirou a nota máxima estipulada pela professora e ganhou um "Muito bom" abaixo da numeração da nota. Parece que isso foi tudo o que sobrou da gente.

O início? Foi muito antes de ter começado. O primeiro contato? Veio muito antes do primeiro contato.

Tenho que voltar muitas centenas de dias e mergulhar naquelas tardes em que fazíamos parte da mesma roda de conversa, onde sabíamos um pouco um do outro. O suficiente para criarmos fantasias e preconceitos e estabelecer uma distância mínima segura para a nossa convivência.

Centenas de dias. Um relacionamento que perdurou durante todo esse tempo de um lado e uma centena de relacionamentos efêmeros do outro.

Dado momento, a solidão nos aplacou. Na mesma época. Ninguém nunca imaginou o que estava por vir. Nem nós mesmos.

Uma meia dúzia de folhas que caiu na sua mão derrubou o preconceito que você nutria por mim. Aparentemente, eu não era o que você imaginava. Eu não era o que as más e realistas línguas falavam.

Meia dúzia de folhas na sua mão foram o pontapé inicial para a nossa história. Três folhas na minha mão são o atestado do que vivemos. E o ponto final do que vivemos.

Você também não era o que eu imaginava. O salto alto e a maquiagem - adornos que a endeusavam - escondiam a sua humana simplicidade. O seu ar distraído que por vezes eu atribuia a um nariz empinado era somente um ar distraído.

Fomos descobrindo isso andando lado a lado sob uma fina e fraca garoa. Descobrimos mais algumas outras coisas sentados. Por trás do óbvio, disfarçamos, até que o inevitável aconteceu. E aconteceu enquanto parafraseávamos uma poesia que começa com "se você vai tentar, vá até o fim/senão, nem comece". Nós tentamos...

As coisas foram acontecendo com uma velocidade e intensidade impressionantes. Impressionantes e surreais. Quem de nós imaginou que um dia estaríamos dentro de uma hidromassagem falando da vida e trepando de forma enlouquecedora poucos dias após o primeiro beijo? Quem de nós imaginou longas horas dentro de um quarto de motel, mais conversando e dando risada do que unindo os corpos?

Risadas. Era tudo o que sabíamos fazer. De tudo, de qualquer coisa. Qualquer deslize de outro ser humano resultava na nossa troca de olhares e nas bochechas inchando represando nossas gargalhadas escandalosas.

E aquela tarde no Ibirapuera? O mundo poderia ter acabado ali enquanto você mexia no meu cabelo e eu ficava olhando o céu azul e os aviões indo pousar no Aeroporto de Congonhas. No Parque da Juventude alguma coisa estava errada. Estávamos mais em silêncio do que o habitual.

E a viagem que fizemos? Hormônios a milhão. Finalmente paz. Finalmente a distância dos problemas. Finalmente dormir e acordar juntos. Fazer nada juntos. Transar em todos os cantinhos da casa. Comer tudo quanto é porcaria. Tirar sonecas depois de comer infinito. Andar na orla sob o céu cinzento e com o açoite do vento frio, ovos caindo das janelas dos apartamentos, tapioca no carrinho que esqueceram de puxar quando puxaram o carro, a trepada fenomenal num espaço onde mal dava para abrir os braços ou ficar em pé e o detergente salvando a Pátria.

"Tenho clara noção de que a minha participação em sua vida não foi muito importante e que na sua lista de considerações, não faço parte nem dos 10 primeiros nomes."

Mas que porra, como não? E por que uma lista?

"Mas não me abalo, gosto mesmo é de relembrar o que foi intenso, apesar de efêmero."

Sinto o cheiro de contradição no ar. Eu não ficaria por tanto tempo ao lado de alguém com importância mínima na minha vida. Não passando por uma fase que não conseguia ficar com alguém por mais de duas semanas sem que a indiferença, a confusão ou o tédio aparecessem para esmorecer e estragar tudo.

Essas três folhas...

Falam sobre uma garota sem perspectivas sobre seu próprio corpo, que antigamente tinha como virtude a paciência, que relata como sua sorte é madrasta e que seus progressos caminham a passos vagarosos. Será mesmo?

Essa garota não parece perceber o rebuliço que causa por onde passa. Não parece perceber o tanto de paixões que inspirou e continua inspirando no local de trabalho e quiçá em outros lugares, já que potencial para causar a discórdia - com seus cabelos negros, traços nipônicos, seios de formato e tamanho instigantes e um belo par de pernas que cada dia que passa parecem ficar mais grossas e torneadas - é algo que não falta em seus 1,57 de altura - de pura gostosura e intelectualidade, segundo ela mesma, uma palhaçona dos infernos.

Essa garota não parece perceber que pra lidar com centenas de pessoas todos os dias fazendo as mesmas perguntas idiotas todos os dias o dia inteiro é necessária uma paciência que deixaria Jó no chinelo. Pois não é fácil conciliar os próprios pensamentos e problemas com uma enxurrada de problemas alheios e ainda por cima estar sob a batuta de um cretino acéfalo que só sabe atrapalhar e malsinar qualquer tipo de existência que cruze seu caminho.

E sobre isso de "passos vagarosos"? Sabemos que tem gente ali que entrou num cargo idiota e que ficou por um longo tempo nele antes de passar para um cargo tão idiota quanto o anterior e que ficam e ficarão estagnados por tempo indeterminado executando uma função imbecil achando que tudo "tá bom demais". A sua insatisfação fez com que seus passos em vez de andarem na linha reta da esteira da preguiça galgassem os degraus que a colocaram numa posição onde muitos ergueram a sobrancelha com surpresa e desdém, duvidando da sua capacidade. E o que temos hoje? Alguém com tanta aceitação quanto o Lula teve presidindo o Brasil. Alguém que é um dos últimos resquícios de capacidade e inteligência que não afundou na avalanche de merda que aquilo virou e que boiou acima do fedor que corrompeu a tantas pessoas. Não, seus passos não foram vagarosos, só foram dados no tempo correto para não serem maiores do que a envergadura das suas pernas (que assaz sinto vontade de ficar no meio) gostosas.

Sobre a redação, eu achei justa a posição da sua professora, não como o alguém que você acha que eu sou, que entende alguma coisa das palavras. Apreciei como o leitor incauto que é surpreendido com uma sequência de palavras que o emociona gradativamente. Eu li lá no ponto de ônibus. Comecei dando risada da sua mordacidade com as palavras no que se refere a ironizar suas próprias qualidades. Sério, eu parecia um idiota sentado naquele banquinho do ponto. Bem, depois a coisa mudou um pouco. Você deixou de lado as reflexões do seu passado, lacerou o presente e me apresentou o esboço de um futuro que se um dia realmente acontecer, fará que minha estada por aqui não seja somente a de um cagalhão ranzinza e resmungão, que é o que sou, que é o que a maioria é. O que eu quero dizer é que eu tive que dobrar as folhas e colocar dentro do livro por que meus olhos começaram a ficar marejados de lágrimas. Foi maldade sua deixar a minha visão turva, pois quase perdi o ônibus. Já dentro dele, respirei um pouco e recomecei a leitura.

Quando por fim terminei de ler (após umas quatro leituras seguidas), fiquei pensativo. No outro dia, quando você perguntou o que eu tinha achado eu não soube responder. Que decepção deve ter sido pra você o meu "ah, sei lá, ficou bacana".

A verdade é que suas palavras me fizeram sonhar. Sonhar dormindo, sonhar acordado. Sonhar com tudo o que foi escrito ali. Imagina, euzinho numa livraria apinhada numa sessão de autógrafos do meu segundo livro! Só posso sorrir com a sua generosidade em acreditar numa capacidade que eu sinceramente creio não possuir. Ah, sonhar, sonhar com um livro publicado e com uma velha amiga, com uma velha paixão surgindo por acaso numa noite especial e prolongá-la até o amanhecer do dia seguinte, noite consumida na consumação do que nos consumiu quando juntos num passado não tão distante aqui e longínquo no seu ótimo conto; ah, olhos de mangá, you're so sweet!

Hoje, por motivos óbvios, não podemos ficar nos encarando o dia inteiro com a cara da melancia do MSN e ficar discutindo o grau de parentesco com aquele pau no cu do seu chefe - seu primo né!?, fala a verdade! Por motivos não tão óbvios acabamos nos afastando como homem e mulher. Que é algo que me intriga até hoje, devo confessar. Sempre fomos uma incógnita pro outro. Lembra? Sempre perscrutando os gestos e os olhares tentando descobrir os segredos que o outro guardava que pareciam ser tão excitantes. E não encontrávamos nada. Nada.

Sinto saudades de você. Saudades das nossas comilanças, de você indo roubar a minha sobremesa no restaurante, de comer potes e mais potes de batatas temperadas, de você me perguntando se havia algo de novo pra ler, de você falando do seu primo. Saudades da sua amizade, da amizade que você acha que eu não tenho por você. Saudades de você como mulher também. Por que não? Tão in... er, desculpa!

E o que nos resta?

Pra mim, três folhas e a esperança de que o que nelas está escrito pode um dia virar realidade...

Não é, rapaaaaaaaz?

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 07/01/2011
Código do texto: T2713916
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